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BRUM: Como se fabricam crianças loucas

dimanche, février 22nd, 2015

Os manicômios não são passado, são presente. Uma pesquisa realizada no hospital psiquiátrico Pinel, em São Paulo, mostra que, mesmo depois das novas diretrizes da política de saúde mental no Brasil, crianças e adolescentes continuaram a ser trancados por longos períodos, muitas vezes sem diagnóstico que justificasse a internação, a mando da Justiça. Conheça a história de Raquel: 1807 dias de confinamento. E de José: 1271 dias de segregação. Ambos tiveram sua loucura fabricada na primeira década deste século

Em uma noite de novembro de 2007, a psicóloga Flávia Blikstein escutou de uma menina duas perguntas. E descobriu que não tinha respostas. Flávia trabalhava num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) infantil, em São Paulo, e encontrava-se na ambulância para levar a garota para sua primeira internação psiquiátrica. Maria, como aqui será chamada, tinha 14 anos. Era negra, alta e magra. Falava pouco, frases curtas. Gostava de brincar de boneca e de desenhar. Às vezes pintava as unhas, arrumava o cabelo, anunciando a adolescência. Maria se molhava o tempo todo, em pequenos rituais. Abria a torneira, fazia uma conchinha com as mãos e molhava os pés, as pernas, os braços. Fazia isso em qualquer lugar, causando vergonha à mãe. Talvez Maria estivesse esculpindo com a água os limites do próprio corpo. Quando fez a primeira pergunta à Flávia, ela ainda tinha as pontas dos dedos úmidas, e o seu olhar também era molhado:

– Por que eu vou ficar aqui?

Flávia descobriu que não tinha resposta.

Maria fez então a segunda pergunta:

– Quem tá aí? Quem vai dormir no quarto comigo?

Flávia descobriu que não tinha resposta também para essa. Não tinha resposta porque, ao contrário do que costuma acontecer quando crianças e adolescentes nos mostram a face do abismo, ela tinha escutado as perguntas. Escutado mesmo. A “menina louca” tinha indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava a dar o primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica. Talvez Maria intuísse que esse passo poderia ser longo. Talvez Maria adivinhasse que os dentes do sistema estavam à sua espera, logo ali.

Flávia abraçou Maria. E pediu desculpas por não saber responder. Maria entrou, carregando olhos molhados e pontos de interrogação.

A “menina louca” tinha indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava a dar o primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica

O que Maria perguntou à Flávia, perguntou a todos nós: por que, no século 21, crianças e adolescentes brasileiros, a maioria filhos de famílias pobres, continuam a ter suas vidas mastigadas num hospital psiquiátrico. A “criança louca” fez aos normais a pergunta mais lúcida: por que a condenavam a uma existência de manicômio. A habitar um mundo de dor, vagando entre paredes, desvestindo a si mesma para vestir um uniforme, sem direito ao desejo. Por que lhe negavam a humanidade tão cedo.

Flávia não pôde esquecer as perguntas, menos ainda a sua falta de respostas. Dedicou-se a buscá-las. Encontrou-as no arquivo do Núcleo da Infância e da Adolescência (NIA) do Centro de Atenção Integrada em Saúde Mental (CAISM) Philippe Pinel. O Pinel é uma das instituições de referência para internação de crianças e adolescentes com problemas mentais no estado de São Paulo. Flávia sabia que aquilo que se costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então, botou-o para falar. Fechou-se na pequena sala bordada de estantes durante todos os sábados de um ano inteiro. Analisou 451 casos, correspondentes a 611 internações ocorridas entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009. Destes, 79% das crianças e adolescentes haviam sido internados apenas uma vez. Os 21% restantes tiveram de duas a sete reinternações. Alguns casos, que continuaram a voltar ao Pinel, ela acompanhou também nos anos de 2010 e 2011. Flávia queria saber qual era o percurso que levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como primeira providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado.

O arquivo do Pinel ficava logo abaixo da enfermaria das crianças e adolescentes. Enquanto pesquisava, Flávia podia ouvir os gritos. Percebeu, porém, que mais do que gritos havia um silêncio longo. Um silêncio, nas suas palavras, “estranho e profundo, um silêncio que não imaginamos num lugar cheio de crianças e adolescentes”. Dentro do arquivo, não. Os prontuários contavam histórias. Ainda que a voz de meninos e meninas ressoasse mais nas ausências, nas entrelinhas, os prontuários diziam de infâncias aniquiladas numa vida de manicômio. E mostravam por que caminhos a fabricação de crianças loucas é uma verdade profunda do Brasil. Flávia chamava o arquivo de “sala das almas”. E as almas falavam.

Duas crianças, que se transformaram em adolescentes no hospital psiquiátrico, contaram histórias que poderiam ilustrar livros escabrosos sobre os manicômios do passado, mas que se passaram na primeira década desse século. Aqui, elas serão chamadas de José e de Raquel. José permaneceu confinado por 1271 dias – ou três anos e cinco meses. Raquel, por 1807 dias. Ficou trancada dos 11 aos 16 anos – e de lá foi transferida para outra instituição psiquiátrica. José e Raquel estavam segregados no Pinel, a mando da Justiça, sob reiterados protestos da equipe técnica. Foram depositados como coisas no Pinel porque ainda é este o destino dado a crianças como eles no Brasil.

Por quê?

Flávia sabia que aquilo que se costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então, botou-o para falar. Analisou 451 casos, correspondentes a 611 internações ocorridas entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009

É preciso prestar muita atenção às respostas que Flávia encontrou. Sua escuta de três mil horas dentro do arquivo transformou-se numa dissertação de mestrado em psicologia social na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Somando-se a trabalhos fundamentais de outros pesquisadores do tema, tanto em São Paulo como em vários estados do Brasil, a investigação mostra por que os manicômios persistem apesar das diretrizes da política de saúde mental e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A Lei nº 10.216, de 2001, orientada pela reforma psiquiátrica, prioriza o atendimento em rede, em serviços inseridos na comunidade, perto da família, e determina que a internação só pode ocorrer depois de esgotados todos os recursos extra-hospitalares. Não é o que acontece em casos demais.

“Medievais”, “desumanos” e “criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir os hospícios desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final dos anos 1970 e conquistou avanços significativos nesse século. A pesquisa mostra, porém, que mesmo instituições e profissionais que tentam fazer diferente são seguidamente vencidos pelas engrenagens e pela escassez de serviços públicos de base. Na prática, ainda hoje, é de manicômio e de vida manicomial que se trata em uma parte significativa dos casos, uma realidade só possível pelo descaso quase absoluto da sociedade com o destino dessas crianças, em geral filhas de famílias pobres. Ao fazer o arquivo morto falar, Flávia constrói respostas que precisam ser escutadas se quisermos, de fato, estancar o crime de fabricar crianças loucas – e, muitas vezes, também o de conseguir enlouquecê-las.

Raquel nasceu em 1994. A mãe estava presa por tráfico de drogas, não porque era chefe de uma organização criminosa, mas porque vendia uma pequena quantidade para sustentar seu próprio vício. Esse destino é comum nos presídios do país, é também gerador de órfãos de mães vivas. Pobre demais para dar conta dela, a avó colocou Raquel num abrigo aos cinco anos. A menina é de imediato descrita como “agressiva”. E, por esse motivo, é afastada das outras crianças. Passa a morar com o que se chama de “mãe social”, isolada numa casa nos fundos do abrigo. A escolha, como mostra Flávia, evidencia que, desde sempre, a resposta à agressividade de Raquel é a exclusão. Obviamente, também não deu certo. De abrigo em abrigo, Raquel virou aquela que “não dava certo” em abrigo nenhum.

Talvez valesse a pena perguntar se a agressividade, ao se olhar para o contexto e as circunstâncias, não era o principal traço de sanidade de Raquel. Mas o direito à história é o primeiro a ser arrancado das “crianças loucas”. Ela já tinha quase tantos rótulos quanto anos de vida: filha de presidiária, abandonada, agressiva, não dá certo… Raquel só era vista por estigmas e fragmentos.

Ela queria saber qual era o percurso que levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como primeira providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado

Negra como Maria, ela foi internada pela primeira vez em 2005, aos 11 anos. Entrou no sistema por ordem da Justiça. Antes de seguirmos o seu destino, é crucial entender as duas formas de entrada nas instituições psiquiátricas, identificadas pela pesquisa. Nelas se encontra uma das chaves para compreender a fabricação das crianças loucas no Brasil atual. Assim como os caminhos pelos quais é mantida viva a função histórica dos manicômios como lugar de segregação daqueles que são decodificados como perigosos para a ordem social, ainda que sejam apenas pobres e abandonados.

Em pouco mais da metade dos casos – 55% – o pedido de internação psiquiátrica foi feito por familiares e por diferentes serviços da rede de saúde. Nos outros 45%, crianças e adolescentes foram internados por ordem judicial. Estes são os dois caminhos de entrada nos hospitais psiquiátricos. A pesquisa mostrou, porém, algumas diferenças fundamentais para compreender o problema: no período pesquisado, a Justiça internou mais cedo, por mais tempo e mais vezes. A maioria dos casos era de adolescentes, mas as crianças respondiam por 20% das internações por ordem judicial. Pela via da rede de saúde, menos de 6% eram crianças. Por ordem judicial, o tempo médio de internação era quase o dobro (55 dias contra 30). A Justiça também foi responsável por 92% das internações com duração maior do que 150 dias. Entre os 14 casos que sofreram internações de quatro a sete vezes, 12 tinham sido confinados por ordem judicial.

Entre eles, Raquel. Dos 11 aos 16 anos, ela foi internada seis vezes no Pinel. A queixa da primeira vez: “Paciente institucionalizada há oito meses (nome de outro hospital), com transtorno de comportamento, heteroagressiva (agressividade dirigida a terceiros), em tratamento ambulatorial pouco resolutivo”. Depois de seis dias, o Pinel deu alta e a menina foi encaminhada a um abrigo. Oito dias mais tarde, ela foi novamente internada por ordem judicial: “Paciente portadora de transtorno de conduta grave. Uma vez no abrigo, voltou a ficar agressiva. Crítica seriamente comprometida, ameaçadora”. Outros 19 dias de internação, e o Pinel pediu à justiça que ela tivesse alta. Passada uma semana, o pedido foi atendido, e ela voltou ao abrigo. Mais três dias e Raquel de novo foi internada no Pinel por ordem judicial: “Ao retornar ao abrigo volta a apresentar quadro importante de liberação de agressividade e falta de controle de impulsos”. Raquel ficou trancada no Pinel por 1004 dias.

Nessas três primeiras vezes, tornou-se evidente que a justiça internava e o hospital liberava, porque não havia razão para manter Raquel confinada. Documentos anexados ao prontuário mostram que a direção da instituição enviou diversos relatórios à justiça, tanto informando da alta médica da paciente quanto pedindo encaminhamento a um abrigo e tratamento ambulatorial. Num dos documentos, a direção afirma: “Nosso hospital está fazendo o papel de Abrigo para esses adolescentes. Sabedores dessa ilegalidade pedimos com urgência uma resolução para esse problema”. E, em outro ofício: “Atualmente a adolescente continua residindo na enfermaria para tratamento de pacientes agudos, encontra-se longe da escola e com enormes prejuízos psicológicos e sociais”.

“Medievais”, “desumanos” e “criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir os hospícios desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final dos anos 1970

A cada três meses, o Pinel mandou ofícios à justiça. Só foi atendido depois de quase dois anos e nove meses. Mas a vida de Raquel fora do hospital durou apenas uma semana. Mais uma vez ela foi internada na instituição. O motivo: “Evolui com episódios recorrentes de agressividade, fugas necessitando atendimento em unidades de emergência. Há dois dias em acompanhamento no CAPS sem aderência ao tratamento”. Depois de mais 413 dias de internação, Raquel fugiu do hospital. Voltou espontaneamente dois dias mais tarde. Para onde mais ela iria, já que o longo período de confinamento esgarçou ainda mais os frágeis vínculos familiares e a impediu de criar novos?

Raquel permaneceu internada mais 244 dias, antes de ser encaminhada a outro abrigo. Quinze dias fora do hospital, e a justiça mandou-a de volta: “Jogou fora seus remédios, quebrou o vidro da brinquedoteca, feriu-se, pegou o telefone para se enforcar e fugiu para uma cidade vizinha dizendo que ia procurar seus avós”.

Na sexta vez, está registrado no prontuário: “A paciente verbaliza que a maior dificuldade que enfrentou no retorno ao abrigo foi uma sensação de inadequação na convivência com adolescentes sem problemas psiquiátricos; infelizmente, criou-se um vínculo inadequado iatrogênico (provocado pela própria prática médica) de segurança com o ambiente de internação, o que se configura como Hospitalismo”.

Em outras palavras. Raquel não sabia mais viver fora do hospital psiquiátrico, seus vínculos estavam dentro da instituição. Se tinha a algum afeto, era ali. Era no hospital que ela sabia como se comportar, identificava uma rotina, fazia amigos entre outras crianças e adolescentes como ela ou realmente doentes. Considerava profissionais de saúde como parentes. E, mais tarde se saberia, quebrava coisas e agredia pessoas quando era mandada para o abrigo porque sabia que assim voltaria àquele que era o único lugar parecido com um lar que tivera na vida.

No total, Raquel ficou trancada no Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua vida cabe em três caixas do arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória manicomial. Em 2010, aos 16 anos, ela foi transferida para outro hospital psiquiátrico

Nessa época, a direção do Pinel mandou mais um ofício à justiça: “Aproveito a oportunidade para dizer da indignação dessa equipe técnica que, por diversas vezes, acionou o judiciário solicitando a desinternação desses adolescentes que, na ocasião, precisavam apenas de um abrigo para moradia e dar continuidade ao atendimento ambulatorial, tendo assim seu direito constituído”.

No total, Raquel ficou trancada no Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua vida cabe em três caixas do arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória manicomial. Em 2010, aos 16 anos, ela foi transferida para outro hospital psiquiátrico.

O diagnóstico que sustentou a condenação de Raquel a uma vida manicomial é bastante revelador: “transtorno de conduta”. Segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID), “os transtornos de conduta são caracterizados por padrões persistentes de conduta dissocial, agressiva ou desafiante. Tal comportamento deve comportar grandes violações das expectativas sociais próprias à idade da criança; deve haver mais do que as travessuras infantis ou a rebeldia do adolescente e se trata de um padrão duradouro de comportamento (seis meses ou mais)”. Essa “patologia”, assim como outras que compõem a CID, é contestada por parte dos psiquiatras, psicanalistas e psicólogos, assim como por profissionais de outros campos do conhecimento. Mas, ainda que se aceite que essa doença de fato existe, o tratamento recomendado é inserção comunitária – e não asilamento.

Em sua investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo generalizado – e quase displicente – para justificar internações em hospitais psiquiátricos. Tanto na internação pela via da rede de saúde como na internação por ordem judicial, o principal diagnóstico é esquizofrenia. Mas o “transtorno de conduta” tem aumentado. Numa comparação com uma pesquisa anterior, na qual Julia Hatakeyama Joia analisou os prontuários do Pinel entre fevereiro de 2001 e agosto de 2005, Flávia constatou que os chamados “transtornos do comportamento e transtornos emocionais” – dos quais “transtornos de conduta” correspondem a 75% dos casos – cresceram como motivo de confinamento. Em 2002, eram causa de 5,26% das internações. Passaram para 7,14% em 2005. E alcançaram 15,2% das ocorrências em 2009. “Em muitos casos, é diagnosticado em crianças com episódios de descontrole e agressividade, sem que exista uma análise sobre sua história e contexto de vida”, afirma a psicóloga. Outro dado comparativo de extrema relevância é que, entre 2001 e 2004, a proporção de internações no Pinel por ordem judicial era de 23% do total. De 2005 a 2009 saltou para 45%.

Em sua investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo generalizado – e quase displicente – para justificar internações em hospitais psiquiátricos

O “transtorno de conduta” é bem mais recorrente na internação por ordem judicial do que na internação pela via da rede de saúde. É o diagnóstico de um quarto das internações com duração maior do que 150 dias e por mais de um terço dos casos de crianças e adolescentes internados de quatro a sete vezes. É o rótulo de Raquel – e também o de José. Meninos representam quase 80% das crianças e adolescentes internados, um dado cujas razões precisam ainda ser melhor compreendidas.

José tinha 10 anos quando deu o primeiro passo para dentro do Pinel, por ordem judicial. Tinha passado, segundo o relatório da instituição, por “maus tratos, negligências e privação afetiva”. Apresentou “comportamentos desafiadores e transgressores, o que resultou em rejeição e abandono familiar, principalmente de sua mãe”. A mãe decidiu entregá-lo para o pai, na Bahia. No dia da viagem, José recusou-se a ir. Ele não queria se separar da mãe. Para não ser obrigado a viajar, por duas vezes tentou se jogar diante dos carros, na rua. A “crise de agitação” levou à sua primeira internação. A duração: 623 dias.

Quando teve alta, José foi encaminhado a um abrigo. Permaneceu apenas três dias antes de ser internado novamente. Dessa vez, ficou trancado por 255 dias. José fugiu. Para onde? Para a casa de mãe. Mais uma internação, por “agitação psicomotora com intensa heteroagressividade, baixa tolerância à frustração, sem crítica, e risco de vida”. Dessa vez, ficou 84 dias na instituição antes de fugir novamente. Para onde? Para a casa da mãe. Na quarta e última internação, ele permaneceu 309 dias no Pinel. Foi então encaminhado para um abrigo. De onde fugiu. Para a Bahia, em busca de um lugar e de um afeto.

No total, José ficou 1271 dias trancado no Pinel: três anos e cinco meses. Sobre José e Raquel, a equipe técnica do hospital enviou um ofício à Justiça, em 2008: “(…) Estão em alta médica, mas permanecem nesta enfermaria psiquiátrica para tratamento de pacientes com transtornos mentais agudos, privadas de ter uma vida digna, por não terem retaguarda familiar e não existirem vagas em abrigos”. Sobre esse destino, Flávia afirma: “As internações são motivadas por uma combinação complexa, que resulta numa situação de vulnerabilidade. A resposta da internação psiquiátrica, além de redutora de complexidade, é ela mesma produtora de maior sofrimento. A internação por ordem judicial revela uma concepção sobre a infância e a adolescência pautadas no medo e no perigo. Propõe uma resposta única a todas as situações, sem considerar diferenças, singularidades e contextos. Reduz crianças e adolescentes ao status de paciente psiquiátrico perigoso, produzindo sua cronificação”. É assim que se fabricam crianças loucas.

Vale a pergunta: fugir pode ter sido um ato de sanidade de José, na tentativa de não ser enlouquecido? De algum modo, apesar de tudo e de todos, ele parece acreditar que existe um lugar para ele, um lugar com afeto. José, Raquel e Maria nos mostram que não há desamparo maior do que o de uma criança num manicômio. Ninguém está mais sozinho nesse mundo do que José, Raquel e Maria. Expostos a uma sociedade que, além de não protegê-los, os enlouquece. Eles fogem, como José, eles quebram tudo, como Raquel, eles fazem perguntas, como Maria. Mas estão sozinhos. E cada um de seus atos de resistência é mais um carimbo de sua suposta loucura num arquivo morto.

O desafio exposto pela pesquisa é também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil. Crianças e adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade, junto à família, sem afastamento da escola

Ao analisar os prontuários, Flávia conseguiu identificar claramente as diferenças entre a internação via rede de saúde e a internação por ordem judicial. Essas são conclusões cruciais do trabalho, porque apontam o que funciona e o que não funciona, apontam saídas. Na rede de saúde, a maior parte dos encaminhamentos é feita pela emergência de hospitais, o que não é o melhor percurso. Apenas 8% são enviados para internação por Unidades Básicas de Saúde ou por CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) infantil, que deveriam ser a porta de entrada para crianças e adolescentes com sintomas de doenças mentais. Esses dados demostram a falta desses serviços, causando desamparo na população que necessita de assistência pelo SUS. Em vez de começarem o tratamento pela rede básica, inserida na comunidade, o iniciam pelo fim e por aquilo que é uma exceção necessária num mínimo de casos: a internação. A hipótese de Flávia é de que, se houvesse mais serviços comunitários de saúde mental, como está previsto na legislação, é provável que a necessidade de internação fosse bem menor. Em vez do hospital psiquiátrico, uma rede articulada, com investimento maior em equipes de saúde mental, na capacitação e implantação do Programa de Saúde da Família e de centros de atenção psicossocial. “A patologização das crianças em situação de vulnerabilidade social evidencia a precariedade da rede de atenção e cuidado, e também a insuficiente articulação entre as políticas públicas nos campos da educação, saúde, habitação e lazer”, afirma.

A diferença é clara na análise dos dados. Nos casos encaminhados pelos Centros de Atenção Psicossocial, a média de dias de internação é mais baixa do que pelos outros caminhos. Quando crianças e adolescentes são cuidados pelos CAPS depois da alta, apenas 3% são reinternados. “Isso mostra que os serviços comunitários funcionam, mas são em número insuficiente”, afirma Flávia. “Nos pacientes encaminhados pela rede de saúde, o hospital funciona como enfermaria de crise. A maioria é de adolescentes de 15 a 17 anos, em seu primeiro surto psicótico, que são cuidados e liberados. Já na internação por via judicial, o hospital funciona como instituição de asilamento.”

O desafio exposto pela pesquisa é também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil. Crianças e adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade, junto à família, sem afastamento da escola. A doença, se de fato existe, deve ser compreendida como uma das várias características – e não como a verdade única sobre aquela criança e adolescente. Mesmo a internação, se for necessária, deve ser entendida como uma parte da história – e não como a história inteira. A internação é um momento, não um destino.

Flávia permanecia das 10h até as 21h de cada sábado na sala das almas do Pinel. Numa noite, estava tão mergulhada nos prontuários que se esqueceu da hora e se atrasou para sair. O guarda do portão recusou-se a deixá-la ir. Eram as regras. Ele não estava ali para pensar sobre elas, mas para cumpri-las. E Flávia soube o que era estar entre muros – e não ser escutada. Depois de um tempo que pareceu largo demais, Flávia conseguiu provar que era uma psicóloga, fazendo um trabalho de pós-graduação para a PUC. Acredita que o fato de ser branca, loira e de olhos azuis possa ter ajudado na sua “soltura”. Mas, ao abrir o portão, o segurança alertou: “Na próxima vez, fica”. Por um momento, trêmula, Flávia teve uma tênue aproximação do que sentiram Raquel, José e Maria, apenas três entre as centenas de “crianças loucas” fabricadas nesse século.

Ao final de sua estadia no arquivo morto que ela descobriu ser vivo, Flávia finalmente tinha as respostas para Maria.

1) Por que eu vou ficar aqui?

– Porque as instituições que compõem a rede de atendimento à criança e ao adolescente trabalham de forma desintegrada e não conseguem atender às suas necessidades.

2) Quem tá aí? Quem vai dormir no quarto comigo?

– As crianças e os adolescentes que tiveram seus destinos produzidos ativamente pela desresponsabilização e pelo abandono.

Maria perguntou. Flávia escutou. Escutou de fato não quando a ouviu, mas quando fez o movimento de buscar as respostas. Elas estão aí, mas só provocarão mudança se o Estado, os governos e a sociedade as escutarem. Se nós as escutarmos. É, afinal, de escuta que se trata.

Flávia desconhece o paradeiro de José. Raquel foi libertada ao completar 18 anos. Mas o que há para Raquel depois do que fizemos com ela? É possível, é moral, é decente dizer à Raquel: vá estudar, vá trabalhar, vá construir uma vida? “É uma marca tão profunda que pessoas como Raquel, mesmo saindo da instituição, continuam institucionalizadas”, diz Flávia. “A institucionalização parece uma grande máquina que suga a potência humana, criando seres humanos sem desejo. A institucionalização é a patologia mais grave da saúde mental.”

Aos 19 anos, Raquel hoje perambula pelas ruas e albergues de São Paulo, ao redor das instituições. Às vezes declara-se “louca” e é internada por curtos períodos. Raquel sempre pergunta pelo seu melhor amigo:

– Onde está José?

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Email: elianebrum@uol.com.br. Twitter: @brumelianebrum

Arquivado em:

http://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/17/opinion/1395072236_094434.html

 

L’unique mort de Malcolm X

samedi, février 21st, 2015

21 fév

 https://quartierslibres.wordpress.com/2015/02/21/lunique-mort-de-malcolm-x/

Malcolm X assassiné

Malcolm X a eu plusieurs vies. On sait qu’il a été un délinquant, un membre de la Nation of Islam, un musulman, une figure militante pour l’égalité, et, dans ses derniers instants, il a été communiste.

Il y a beaucoup à dire de ses multiples vies, toute personne qui s’inspire des combats et du parcours de Malcolm X se sentira plus proche de telle ou telle période. Son parcours se prête à de nombreuses interprétations.

Mais pas sa mort. Son assassinat a été planifié par le FBI. Malcolm X a été tué avec la complicité des sbires de la Nation Of Islam.

Malcolm X n’a pas été tué pour des raisons criminelles, raciales ou religieuses. Son passé de délinquant, ses déclarations contre le pouvoir blanc, sa foi dans l’Islam n’ont pas scellé son destin.

Malcolm X a été condamné à mort par le gouvernement américain dès lors qu’il est devenu le porte-parole d’un discours communiste.

Ce n’est pas la virulence de son discours que le FBI a voulu éteindre, mais la propagation d’une parole qui expliquait que les injustices sociales, raciales et de genre ont un fondement économique. La traite, les plantations: tout cela a pour origine le profit et conditionne le fonctionnement de la société américaine toute entière.

Malcolm X a été tué pour avoir dénoncé le fonctionnement du capitalisme.

Le discours de la Nation Of Islam est particulièrement violent, mais cela ne fait pas de cette organisation un ennemi du gouvernement américain, parce qu’elle ne remet pas en cause le fonctionnement économique de la société américaine.

Le Black Panther Party a été décimé pour des raisons similaires à celles qui ont poussé la classe dirigeante à commander l’exécution de Malcolm X. Les Panthers étaient un groupe de communistes révolutionnaires se battant pour mettre en place une société égalitaire.

Malcolm X est mort parce qu’il est devenu porteur d’une alternative économique et sociale au capitalisme.

 

Malcolm X a eu plusieurs périodes dans sa vie, mais il n’a eu qu’une seule mort.

ZIMMERMANN: Instrumentaliser la terreur pour contrôler les communications chiffrées : une dérive dangereuse et anti-démocratique

mercredi, février 18th, 2015

Tribune de Jérémie Zimmermann, co-fondateur de La Quadrature du Net, initialement publié et édité par Taz, en allemand, le 12 février 2015.

Les attentats de janvier à Paris ont déclenché une vague de discours sécuritaires et de dangereux projets législatifs s’annoncent bien au-delà des frontières françaises. Un contrôle des communications en ligne, de la surveillance, des attaques contre l’expression anonyme et le chiffrement sont déjà à l’ordre du jour, sous prétexte de combattre un ennemi invisible dans une guerre perpétuelle.

En novembre 2014, le Premier ministre Manuel Valls et le ministre de l’Intérieur Bernard Cazeneuve ont vu leur nouvelle loi anti-terrorisme être adoptée à l’unanimité. Cette loi permet au ministère de l’Intérieur de censurer des sites web s’il estime qu’ils incitent au terrorisme. Elle retire également les mesures de protection de la liberté de la presse pour les propos relevant « d’apologie du terrorisme », et permet la mise en place administration d’une restriction des déplacements et d’une surveillance pour les individus considérés comme terroristes potentiels. L’institution gouvernementale chargée de la protection des droits de l’Homme, la CNCDH (Commission Nationale Consultative pour les Droits de l’Homme) a elle-même considéré que cette loi constituait une violation des droits fondamentaux. Pour couronner le tout, après avoir été adopté en procédure d’urgence, le nouveau texte n’a même pas été examiné par le Conseil Constitutionnel, aucun groupe politique n’ayant osé le remettre en question de peur d’être taxé de « pro-terroriste ».

Quelques mois auparavant, en décembre 2013, la Loi de Programmation Militaire avait déjà été adoptée dans des conditions similaires, autorisant la surveillance en masse, sur simple requête administrative, de nombreux types de données provenant de sources diverses, pour des buts multiples. Ce texte légalisait sans doute ce qui était déjà des pratiques courantes des services de renseignement.

Aujourd’hui, le débat public hystérisé alimenté par la peur est instrumentalisé afin de justifier l’adoption hâtive de nouvelles lois sécuritaires. Dans les semaines à venir, MM. Valls et Cazeneuve proposeront une nouvelle loi sur le renseignement. Dans le contexte actuel, il est probable que ce nouveau texte apportera son propre lot de nouvelles mesures de surveillance, de pouvoir renforcé pour l’exécutif et la police, et de réduction constante du rôle du judiciaire en tant que gardienne-fou des droits fondamentaux. Tout porte à croire qu’Internet deviendra le bouc émissaire de ces atteintes à nos libertés.

Cette instrumentalisation de la terreur pour attaquer les libertés fondamentales ne concerne cantonne pas que à la France, elle est une spirale qui entraîne l’ensemble des citoyens européens.

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Le Premier ministre britannique M. Cameron a prétexte les attaques de Paris pour lancer une offensive contre la liberté des citoyens à communiquer de façon sécurisée en chiffrant leurs messages, ce que le coordinateur européen de la lutte contre le terrorisme a rapidement soutenu dans une note préparatoire destinée au Conseil Européen, suggérant que : « La Commission devrait être invitée à étudier des règles qui obligeraient les entreprises des secteurs Internet et télécommunications opérant dans l’Union Européenne à fournir aux autorités nationales compétentes, sous certaines conditions établies dans les lois nationales applicables et en plein accord avec les droits fondamentaux, un accès aux communications des utilisateurs (i.e. partager les clés de chiffrement). »1

De telles tentatives de prise de contrôle des outils permettant le chiffrement des communications illustrent une tendance alarmante à l’extension autoritaire du pouvoir du gouvernement et de la police en portant massivement atteinte à nos libertés fondamentales.

L’analyse des documents d’Edward Snowden montre que la NSA dépense 250 millions de dollars par an (environ 220 millions d’euros) pour son programme « BullRun », dont l’objectif est de saboter activement les technologies de sécurisation des données et des communications. À l’aide de diverses méthodes allant de la corruption des organes de standardisation à l’infiltration des équipes de développement, en passant par des pots-de-vin destinés aux sociétés pour qu’elles affaiblissent délibérément leur technologie ou laissent en place des failles de sécurité ou des portes dérobées, la NSA a fait en sorte de pouvoir accéder aux communications transitant par tous les équipements commerciaux conçus par des sociétés américaines. La conséquence directe est cette leçon ô combien précieuse : à moins que la loi américaine ne soit radicalement réformée, la confiance est irrémédiablement rompue dans ces sociétés qui participent à la fabrication de plus de 90% des technologies que beaucoup utilisent quotidiennement, parmi lesquelles Apple, Microsoft, Google, Facebook, Cisco, Motorola, etc. Cette prise de conscience doit faire naître d’indispensables changements radicaux dans notre rapport à la technologie.

Un tel sabotage gouvernemental de nos outils quotidiens prouve qu’il n’y a pas de technologie digne de confiance pour la protection de nos données et communications qui ne soit pas du logiciel libre. Le logiciel libre appartient à tous, c’est un bien commun sur lequel nous avons tous, par l’intermédiaire de la publication de son code source, de sa « recette », une capacité collective de compréhension, de participation et de contrôle. Il est beaucoup plus difficile d’inclure des fonctionnalités malveillantes de surveillance dans un logiciel libre si suffisamment d’yeux et de cerveaux vigilants y prêtent attention.

Développer, améliorer et diffuser des logiciels libres pour le chiffrement « de bout en bout » et les communications décentralisées encourage le développement de talents et d’économies locales. Cette démarche donne aux citoyens le pouvoir de partager les connaissances technologiques et d’être eux-mêmes acteurs de la sécurité de leurs données et communications. En outre, c’est une façon de construire des modèles de sécurité résilients permettant à nos sociétés de mieux résister à des tentatives de contrôle totalitaire. Des politiques industrielles intelligentes pourraient favoriser le développement de logiciel et matériel libres (par entre autres des incitations fiscales, la commande publique, l’éducation supérieure) comme un objectif stratégique pour un futur technologique permettant des sociétés libres et justes.

data encryptionLorsque David Cameron pose la question rhétorique : « Souhaitons-nous autoriser des moyens de communication inter-personnelles que nous (le gouvernement) ne pouvons pas lire ? », la réponse collective doit être « Oui, absolument, et les gouvernements doivent protéger ce droit ! ». La possibilité d’écrire et de communiquer sans être surveillé est une condition essentielle pour la liberté d’expression et la démocratie. Les communications privées sécurisées sont l’un des rares outils dont disposent les citoyens du monde entier pour s’organiser contre l’oppression et la tyrannie.

Les enquêteurs qui travaillent sur des crimes graves disposent d’une multitude de moyens d’accéder au contenu des communications d’un individu, à travers une surveillance ciblée qui peut et doit être contrôlée démocratiquement. Plutôt que d’affaiblir la cryptographie de tous les citoyens du monde, ils peuvent par exemple intercepter en clair les entrées et sorties des communications chiffrées d’un individu par le biais d’un mouchard placé sur sa machine, de caméras ou de micros espions, de l’infiltration des réseaux, etc. Dans la plupart des cas, ce sont bien ces « bons vieux » moyens d’enquête ciblée, qui doivent obligatoirement être soumis au contrôle d’un juge judiciaire indépendant, qui permettent une prévention efficace des crimes et du terrorisme. Les autres techniques, basées sur la surveillance de masse et la corruption de la technologie elle-même sont inefficaces pour cela. En permettant un espionnage économique et politique de grande envergure, elles sont un redoutable outil de contrôle social, menant inévitablement à des abus. Cette doctrine est incompatible avec la démocratie.

Si les libertés fondamentales, y compris le droit aux communications privées et à l’expression anonyme, ne sont pas pleinement protégés par ceux qui prétendent combattre les criminels qui cherchent à détruire nos sociétés, nous obtiendrons à coup sûr le pire des deux mondes : la peur et le contrôle autoritaire.

En tant que citoyens, nous devons résister collectivement à cette instrumentalisation de la terreur par ceux qui veulent restreindre nos libertés et contrôler les populations, avec l’illusion qu’ils seront ainsi maintenus au pouvoir. Pour ce faire, nous devons investir nos énergies dans la diffusion, le développement et l’amélioration des technologies basées sur le logiciel libre, les communications décentralisées et le chiffrement de bout-en-bout. En parallèle, nous devons créer une dynamique politique pour imposer une évaluation en profondeur des pratiques de surveillance et reprendre le contrôle des institutions de renseignement lorsqu’elles sont hors de contrôle, et mettre en place des politiques qui protégeront efficacement et durablement nos libertés en ligne et hors ligne.

AGAMBEN: « Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro »

mercredi, février 18th, 2015

Entrevista com Giorgio Agamben

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/512966-giorgio-agamben

« O capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro », afirma Giorgio Agamben, em entrevista concedida a Peppe Salvà e publicada por Ragusa News, 16-08-2012.

Giorgio Agamben é um dos maiores filósofos vivos. Amigo de Pasolini e de Heidegger, Giorgio Agamben foi definido pelo Times e por Le Monde como uma das dez mais importantes cabeças pensantes do mundo. Pelo segundo ano consecutivo ele transcorreu um longo período de férias em Scicli, na Sicília, Itália, onde concedeu a entrevista.

Segundo ele, « a nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governamentalidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas« . Assim, « a tarefa que nos espera consiste em pensar integralmente, de cabo a cabo,  aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”, afima Agamben.

A tradução é de Selvino  J. Assmann, professor de Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.

Eis a entrevista.

O governo Monti invoca a crise e o estado de necessidade, e parece ser a única saída tanto da catástrofe  financeira quanto das formas indecentes que o poder havia assumido na Itáli. A convocação de Monti era a única saída, ou poderia, pelo contrário, servir de pretexto para impor uma séria limitação às liberdades democráticas?

“Crise” e “economia” atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. ”Crise” hoje em dia significa simplesmente “você deve obedecer!”. Creio que seja evidente para todos que a chamada “crise” já dura decênios e nada mais é senão o modo normal como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se trata de um funcionamento que nada tem de racional.

Para entendermos o que está acontecendo, é preciso tomar ao pé da letra a idéia de Walter Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro.  Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro.  O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas – assumiu  o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania ), manipula e gere a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo. Além disso, o fato de o capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o titulo de um grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: “salvar o euro a qualquer preço”. Isso mesmo, “salvar” é um termo religioso, mas o que significa “a qualquer preço”? Até ao preço de “sacrificar” vidas humanas? Só numa perspectiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa) podem ser feitas afirmações tão evidentemente absurdas e desumanas.

A crise econômica que ameaça levar consigo parte dos Estados europeus pode ser vista como condição de crise de toda a modernidade?

A crise atravessada pela Europa não é apenas um problema econômico, como se gostaria que fosse vista, mas é antes de mais nada uma crise da relação com o passado. O conhecimento do passado é o único caminho de acesso ao presente. É procurando compreender o presente que os seres humanos – pelo menos nós, europeus – são obrigados a interrogar o passado.  Eu disse “nós, europeus”, pois me parece que, se admitirmos que a palavra “Europa” tenha um sentido,  ele, como hoje aparece  como evidente, não pode ser nem político, nem religioso e menos ainda econômico,  mas talvez consista nisso, no fato de que  o homem europeu – à diferença, por exemplo, dos asiáticos e dos americanos, para quem a história  e o passado tem um significado completamente diferente – pode ter acesso à sua verdade unicamente através de um confronto com o passado, unicamente fazendo as contas com a sua história.

O passado não é, pois, apenas um patrimônio de bens e de tradições, de memórias e de saberes, mas também e sobretudo um componente antropológico essencial do homem europeu, que só pode ter acesso ao presente olhando, de cada vez, para o que ele foi.  Daí nasce a relação especial que os países europeus (a Itália, ou melhor, a Sicília, sob este ponto de vista é exemplar)  têm com relação às suas cidades, às suas obras de arte, à sua paisagem: não se trata de conservar bens mais ou menos preciosos, entretanto exteriores e disponíveis; trata-se, isso sim,  da própria realidade da Europa, da sua indisponível sobrevivência. Neste sentido, ao destruírem, com o cimento, com  as autopistas e a Alta Velocidade, a paisagem italiana, os especuladores não nos privam apenas de um bem, mas destroem a nossa própria identidade. A própria expressão “bens culturais” é enganadora, pois sugere que se trata de bens entre outros bens, que podem ser desfrutados economicamente e talvez vendidos, como se fosse possível liquidar e por à venda a própria identidade.

Há muitos anos, um filósofo que também era um alto funcionário da Europa nascente, Alexandre Kojève, afirmava que o homo sapiens havia chegado  ao fim de sua história e já não tinha nada diante de si a não ser duas possibilidades: o acesso a uma animalidade pós-histórica (encarnado pela american way of life) ou o esnobismo (encarnado pelos japoneses, que continuavam a celebrar as suas cerimônias do chá, esvaziadas, porém, de qualquer significado histórico). Entre uma América do Norte integralmente re-animalizada e um Japão que só se mantém humano ao preço de renunciar a todo conteúdo histórico, a Europa poderia oferecer a alternativa de uma cultura que continua sendo humana e vital, mesmo depois do fim da história, porque é capaz de confrontar-se com a sua própria história na sua totalidade e capaz de alcançar, a partir deste confronto, uma nova vida.

A sua obra mais conhecida, Homo Sacer, pergunta pela relação entre poder político e vida nua, e evidencia as dificuldades presentes nos dois termos. Qual é o ponto de mediação possível entre os dois pólos?

Minhas investigações mostraram que o poder soberano se fundamenta, desde a sua origem, na separação entre vida nua  (a vida biológica, que, na Grécia, encontrava seu lugar na casa) e vida politicamente qualificada (que tinha seu lugar na cidade). A vida nua foi excluída da política e, ao mesmo tempo,  foi incluída e capturada através da sua exclusão. Neste sentido, a vida nua é o fundamento negativo do poder.  Tal separação atinge sua forma extrema na biopolítica moderna, na qual o cuidado e a decisão sobre a vida nua se tornam aquilo que está em jogo na política.  O que aconteceu nos estados totalitários do século XX reside no fato de que é o poder (também na forma  da ciência) que decide, em última análise, sobre o que é uma vida humana e sobre o que ela não é. Contra isso, se trata de pensar numa política das formas de vida, a saber, de uma vida que nunca seja separável da sua forma, que jamais seja vida nua.

O mal-estar, para usar um eufemismo, com que  o ser humano comum se põe frente  ao mundo da política tem a ver especificamente com a  condição italiana ou é de algum modo inevitável?

Acredito que atualmente estamos frente a um fenômeno novo que vai além do desencanto e da desconfiança recíproca entre os cidadãos e o poder e tem a ver com o planeta inteiro. O que está acontecendo é uma transformação radical das categorias com que estávamos acostumados a pensar a política. A nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governamentalidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas. E que este modelo seja, do ponto de vista do poder, mais  econômico e funcional é provado pelo fato de que foi adotado também por aqueles regimes que até poucos anos atrás eram ditaduras. É mais simples manipular a opinião das pessoas através da mídia e da televisão do que dever impor em cada oportunidade as próprias decisões com a violência.  As formas da política por nós conhecidas – o Estado nacional, a soberania, a participação democrática, os partidos políticos, o direito internacional – já chegaram ao fim da sua história. Elas continuam vivas como formas vazias, mas a política tem hoje a forma de uma “economia”, a saber, de um governo das coisas e dos seres humanos. A tarefa que nos espera consiste, portanto, em pensar integralmente, de cabo a cabo,  aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”.

O estado de exceção, que o senhor vinculou ao conceito de soberania, hoje em dia parece assumir o caráter de normalidade, mas os cidadãos ficam perdidos perante a incerteza na qual vivem cotidianamente. É possível atenuar esta sensação?

Vivemos há decênios num estado de exceção que se tornou regra, exatamente assim como acontece na economia  em que a crise se tornou a condição normal. O estado de exceção – que deveria sempre ser limitado no tempo – é, pelo contrário, o modelo normal de governo, e isso precisamente nos estados que se dizem democráticos.  Poucos  sabem que as normas introduzidas, em matéria de segurança, depois do 11 de setembro (na Itália já se havia começado a partir dos anos de chumbo) são piores do que aquelas que vigoravam sob o fascismo. E os crimes contra a humanidade cometidos durante o nazismo foram possibilitados exatamente pelo fato de Hitler, logo depois que assumiu o poder, ter proclamado um estado de exceção que nunca foi revogado. E certamente ele não dispunha das possibilidades de controle (dados biométricos, videocâmaras, celulares, cartões de crédito) próprias dos estados contemporâneos. Poder-se-ia afirmar hoje que o Estado considera todo cidadão um terrorista virtual. Isso não pode senão piorar e tornar impossível  aquela participação na política que deveria definir a democracia. Uma cidade cujas praças e cujas estradas são controladas por videocâmaras não é mais um lugar público: é uma prisão.

A  grande autoridade que muitos atribuem a estudiosos que, como o senhor, investigam a natureza do poder político poderá trazer-nos esperanças de que, dizendo-o de forma banal,  o futuro será melhor do que o presente?

Otimismo e pessimismo não são categorias úteis para pensar. Como escrevia Marx em carta a Ruge: ”a situação desesperada da época em que vivo me enche de esperança”.

Podemos fazer-lhe uma pergunta sobre a lectio que o senhor deu em Scicli? Houve quem lesse a conclusão que se refere a Piero Guccione como se fosse uma homenagem devida a uma amizade enraizada no tempo, enquanto outros viram nela uma indicação  de como sair do xequemate no qual a arte contemporânea está envolvida.

Trata-se de uma homenagem a Piero Guccione e a Scicli, pequena cidade em que moram alguns dos mais importantes pintores vivos. A situação da arte hoje em dia é talvez o lugar exemplar para compreendermos a crise na relação com o passado, de que acabamos de falar. O único lugar em que o passado pode viver é o presente, e se o presente não sente mais o próprio passado como vivo, o museu e a arte, que daquele passado é a figura eminente, se tornam lugares problemáticos. Em uma sociedade  que já não sabe o que fazer do seu passado, a arte se encontra premida entre a Cila do museu e a Caribdis da mercadorização. E muitas vezes, como acontece nos templos do absurdo que são os museus de arte contemporânea,  as duas coisas coincidem.

Duchamp talvez tenha sido o primeiro a dar-se conta do beco sem saída em que a arte se meteu. O que faz Duchamp quando inventa o ready-made?  Ele toma um objeto de uso qualquer, por exemplo, um vaso sanitário, e, introduzindo-o num museu, o força a apresentar-se como obra de arte.  Naturalmente – a não ser o breve instante que dura o efeito do estranhamento e da surpresa – na realidade nada alcança  aqui a presença: nem a obra, pois se trata de um  objeto de uso qualquer, produzido industrialmente, nem a operação artística, porque não há de forma alguma uma poiesis, produção – e nem sequer o artista, porque aquele que assina com um irônico nome falso o vaso sanitário não age como artista, mas, se muito, como filósofo ou crítico, ou, conforme gostava de dizer Duchamp, como “alguém que respira”, um simples ser vivo.

Em todo caso, certamente ele não queria produzir uma obra de arte, mas desobstruir o caminhar da arte, fechada entre o museu e a mercadorização.  Vocês sabem: o que de fato aconteceu é que um conluio,  infelizmente ainda ativo, de hábeis especuladores e de “vivos” transformou o ready-made em obra de arte. E a chamada arte contemporânea nada mais faz do que repetir o gesto de Duchamp, enchendo com  não-obras e performances a museus, que são meros organismos do mercado, destinados a acelerar a circulação de mercadorias, que, assim como o dinheiro, já alcançaram o estado de liquidez e querem ainda valer como obras. Esta é a contradição da arte contemporânea: abolir a obra e ao mesmo tempo estipular seu preço.

guia prático de combate à vigilância na internet

jeudi, février 12th, 2015

Pela liberdade de comunicação…

temboinalinha21

https://temboinalinha.org/

DANDO NOME AOS BOIS

Boi na Linha: intrometidx, intrusx;
metáfora popular usada quando há algum/a intrusx no meio de uma comunicação.

Para os movimentos sociais, a comunicação rápida e segura entre membros de um coletivo, entre coletivos, ou entre ativistas independentes é fundamental tanto para o planejamento e a eficácia das ações, como também para o fortalecimento do próprio movimento de resistência.

Na era analógica, espionar as comunicações de um indivíduo ou grupo e apreender documentos sensíveis, eram ações bastante comuns, apesar de serem dirigidas a alvos específicos e um tanto difíceis de serem camufladas. Com a internet, essa prática se tornou mais discreta, silenciosa e ainda mais comum, sendo utilizada em larga escala, para a espionagem em massa, e por motivos que ultrapassam os estritamente políticos.

A cada dia fica mais evidente que grande parte das atividades na internet estão sujeitas à vigilância, e que há, quase sempre, bois na linha: algo ou alguém coletando seus dados privados, espiando suas conversas e e-mails, ou registrando os sites acessados por você. Esses bois não são inofensivos, e podem inviabilizar as ações de um grupo, expor os ativistas, e favorecer a repressão.

MAS CALMA, É POSSÍVEL COMBATER A VIGILÂNCIA E MANDAR OS BOIS PASTAREM!

Felizmente, certas propriedades físicas do nosso mundo fazem com que cifrar informações seja mais fácil que decifrá-las. A mudança de alguns hábitos e a utilização de criptografia e de softwares livres e de código aberto, podem proporcionar um bom nível de privacidade, ainda que não garanta uma segurança total.

“TEM BOI NA LINHA?” É UM GUIA PRÁTICO DE COMBATE À VIGILÂNCIA NO ÂMBITO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS, E É DESTINADO A GRUPOS DE ATIVISTAS, JORNALISTAS, MIDIALIVRISTAS OU A QUALQUER PESSOA QUE PRECISE OU DESEJE SE PROTEGER, E PROTEGER SUAS COMUNICAÇÕES E ARQUIVOS, DA VIGILÂNCIA DO ESTADO E DE INSTITUIÇÕES PRIVADAS.

 

L’Appel des Appels

jeudi, février 12th, 2015

La charte de L’Appel des Appels

Nous, professionnels du soin, du travail social, de la justice, de l’éducation, de la recherche, de l’information, de la culture et de tous les secteurs dédiés au bien public, avons décidé de nous constituer en collectif national pour résister à la destruction volontaire et systématique de tout ce qui tisse le lien social.

Réunis sous le nom d’Appel des appels, nous affirmons la nécessité de nous réapproprier une liberté de parole et de pensée bafouée par une société du mépris.

Face à une idéologie oppressive qui promeut le culte de l’argent et la peur de l’autre,

 

Face à la souffrance sociale que cette idéologie génère,
Face à la multiplication de prétendues réformes aux conséquences désastreuses,
Face au saccage de nos missions et de nos pratiques professionnelles,

 

Face à la promotion du prêt-à-penser et de procédures managériales et sécuritaires,
Face à la désignation à la vindicte collective de citoyens toujours plus nombreux,
Face à l’abandon progressif des plus fragiles parmi nous…

 

Nous entendons lutter contre toute politique qui liquide les principes de droit et les valeurs de notre démocratie, issus des Lumières et du Conseil National de la Résistance.

 

Avec tous ceux et celles qui nous rejoignent, nous nous engageons à  :

  • faire le lien entre toutes les réflexions, les initiatives et les mobilisations dans l’esprit de notre appel et les amplifier ;
  • constituer un espace public de vigilance vers lequel remonteront les analyses et propositions de professionnels et de citoyens ;
  • relayer, par nos comités locaux, notre site Internet et nos actions une parole qui échappe aux processus de normalisation, afin de promouvoir une éthique citoyenne, fondée sur le respect de la dignité humaine comme des libertés publiques et individuelles ;
  • construire, en liaison avec les associations et les partenaires qui le souhaitent, un espace d’analyse des politiques fondées sur le culte de la performance et de la norme dont les corollaires sont la peur, l’exclusion, voire l’élimination ;
  • donner le plus grand retentissement à tous ceux qui organisent une résistance responsable et non violente aux politiques en cours ;
  • soutenir et multiplier les actions visant à dénoncer et combattre les dispositifs de servitude, les atteintes aux libertés fondamentales et la dénaturation de nos métiers ;
  • exiger des instances constituées – partis politiques, syndicats, pouvoirs publics – qu’elles s’opposent, par des réponses adaptées, à la démolition des valeurs pour lesquelles nous nous battons.

Décidés à combattre une idéologie de la norme et de la performance qui exige notre soumission et augure d’une civilisation inique et destructrice de l’humain, nous voulons réinventer une société de libertés, de droits, de justice et d’hospitalité.

 

Collectif national de l’Appel des appels – 24 février 2009
Pour signer la pétition

 

L’Appel des Appels

Ecoutez l’appel des appels

 

« Nous, professionnels du soin, du travail social, de l’éducation, de la justice, de l’information et de la culture, attirons l’attention des Pouvoirs Publics et de l’opinion sur les conséquences sociales désastreuses des Réformes hâtivement mises en place ces derniers temps.

A l’Université, à l’École, dans les services de soins et de travail social, dans les milieux de la justice, de l’information et de la culture, la souffrance sociale ne cesse de s’accroître. Elle compromet nos métiers et nos missions.

Au nom d’une idéologie de « l’homme économique », le Pouvoir défait et recompose nos métiers et nos missions en exposant toujours plus les professionnels et les usagers aux lois « naturelles » du Marché. Cette idéologie s’est révélée catastrophique dans le milieu même des affaires dont elle est issue.

Nous, professionnels du soin, du travail social, de l’éducation, de la justice, de l’information et de la culture, refusons qu’une telle idéologie mette maintenant en « faillite » le soin, le travail social, l’éducation, la justice, l’information et la culture.

Nous appelons à une Coordination Nationale de tous ceux qui refusent cette fatalité à se retrouver le 31 janvier 2009 à Paris. »
Roland Gori et Stefan Chedri,  le 22 décembre 2008

http://www.appeldesappels.org/l-appel-des-appels-1.htm

Peut-on diagnostiquer la santé mentale ?

jeudi, février 12th, 2015

Les Nouveaux chemins de la connaissance

émission radiophonique de France Culture

Par Adèle Van Reeth

Réalisation : Mydia Portis Guérin

Lectures : Jean-Louis Jacopin

La santé (4/4) : Peut-on diagnostiquer la santé mentale ?

12.02.2015 – 10:00

Invité(s) :
Roland Gori, psychanalyste, Professeur émérite des Universités, co-initiateur de L’Appel des appels

http://www.franceculture.fr/emission-les-nouveaux-chemins-de-la-connaissance-la-sante-44-peut-on-diagnostiquer-la-sante-mentale-#.VNx9cG1ibw8.twitter

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FURTADO: Ilha das Flores

jeudi, février 5th, 2015

LÖWY: Benjamin como sociólogo da religião

mercredi, février 4th, 2015

LÖWY: ecossocialismo é alternativa à crise

mercredi, février 4th, 2015

Michael Löwy*

Texto publicado na edição 48 da revista Democracia Viva

O atual modelo de desenvolvimento está em crise. É ao mesmo tempo uma crise econômica e uma crise ecológica. Ambas resultam do mesmo fenômeno: um sistema que transforma tudo – a terra, a água, o ar que respiramos, os seres humanos – em mercadoria e que não conhece outro critério a não ser a expansão dos negócios e a acumulação de lucro. As duas crises são aspectos interligados de uma crise mais geral, a crise da civilização capitalista industrial moderna.

O discurso hegemônico atual sobre o “desenvolvimento sustentável”, que se manifesta, entre outros contextos, no processo oficial da Rio+20, é incapaz de propor alternativas efetivas, porque se situa nos limites impostos pela economia de mercado, isto é, pelas regras do lucro, da feroz competição e da acumulação ilimitada, que são inerentes ao sistema capitalista.

Os cientistas nos preveniram: se continua o business as usual, no futuro próximo enfrentaremos desastres sem precedente na história humana. O que nos propõe o Rascunho Zero da Rio+20 é um business as usual verde, uma folha de parreira verde para tentar esconder a nudez de um sistema intrinsecamente perverso e destruidor.

Há alguns anos atrás, quando se falava dos perigos de catástrofes ecológicas, os autores se referiam ao futuro dos nossos netos ou bisnetos, a algo que estaria no futuro distante, dentro de cem anos. Agora, porém, os processos de devastação da natureza, de deterioração do meio ambiente e de mudança climática se aceleraram a tal ponto que não estamos mais discutindo um futuro a longo prazo. Estamos discutindo processos que já estão em curso. A catástrofe já começou, essa é a realidade. E realmente estamos numa corrida contra o tempo para tentar impedir, brecar, conter esse processo desastroso.

Quais são os sinais que mostram o caráter cada vez mais destrutivo do processo de acumulação capitalista em escala global? O mais óbvio e perigoso é a mudança climática, um processo que resulta dos gases do efeito de estufa emitidos pela indústria, pelo agronegócio e pelo sistema de transporte das sociedades capitalistas modernas. Essa mudança, que já começou, terá como resultado não só o aumento da temperatura em todo planeta, mas a desertificação de setores inteiros de vários continentes, a elevação do nível do mar, o desaparecimento de cidades marítimas – Veneza, Asmterdã, Hong-Kong, Rio de Janeiro. Uma série de catástrofes que se colocam no horizonte dentro de – não se sabe – 20, 30, 40, isto é, no futuro próximo.

A questão do capitalismo

Tudo isso não resulta do excesso de população, como dizem alguns, nem da tecnologia em si, abstratamente, ou tampouco da má vontade do gênero humano. Trata-se de algo muito concreto: as consequências do processo de acumulação do capital, em particular, na sua forma atual, da globalização neoliberal sob a hegemonia do império norte-americano. Esse é o elemento essencial, motor dessa lógica destrutiva que corresponde à necessidade de expansão ilimitada – aquilo que Hegel chamava de “má infinitude” –, um processo infinito de acumulação de mercadorias, acumulação do capital, acumulação do lucro, inerentes à lógica do capital.

A questão ecológica é a questão do capitalismo. Para parafrasear uma observação do filósofo da Escola de Frankfurt Max Horkheimer – “se você não quiser falar do capitalismo, é melhor não falar do fascismo” –, eu diria também: se você não quer falar do capitalismo, não adianta falar do meio ambiente, porque a destruição, a devastação, o envenenamento ambiental são produtos do processo de acumulação do capital. Logo, a questão que se coloca é a de uma alternativa, mas de uma alternativa que seja radical. As tentativas de soluções moderadas se revelam completamente incapazes de enfrentar esse processo catastrófico. O chamado Tratado de Kioto está muito aquém, quase infinitamente aquém, do que seria o necessário, e, ainda assim, o governo norte-americano, principal poluidor planetário, recusa-se a assinar.

O Tratado de Kioto, na realidade, propõe resolver o problema das emissões de gases do efeito estufa por intermédio do assim chamado “mercado dos direitos de poluir”. As empresas que emitem mais CO2 vão comprar de outras que poluem menos direitos de emissão. Isso seria “a solução” do efeito estufa. Obviamente, as soluções que aceitam as regras do jogo capitalista, que se adaptam às regras do mercado, não são soluções, porque são incapazes de enfrentar a crise ambiental, uma crise que se transforma, devido à mudança climática, numa crise de sobrevivência da espécie humana.

A Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de dezembro de 2009 em Copenhague foi mais um exemplo clamoroso da incapacidade – ou da falta de interesse – das potências capitalistas para enfrentar o dramático desafio do aquecimento global. A montanha de Copenhague pariu um rato, uma miserável declaração política, sem nenhum compromisso concreto e cifrado de redução das emissões de gases do efeito de estufa. Infelizmente, pode-se prever que o resultado da Rio+20 não será diferente.

Ecossocialismo

Precisamos pensar, portanto, em alternativas radicais, alternativas que coloquem um outro horizonte histórico, mais além do capitalismo, mais além das regras de acumulação capitalista e da lógica do lucro e da mercadoria. Como uma alternativa radical é aquela que vai à raiz do problema, essa alternativa é o ecossocialismo, uma proposta estratégica que resulta da convergência entre a reflexão ecológica e a reflexão socialista, a reflexão marxista. Existe hoje em escala mundial uma corrente ecossocialista. Há um movimento ecossocialista internacional, que, recentemente, por ocasião do Fórum Social Mundial de Belém, em janeiro de 2009, publicou uma declaração sobre a mudança climática. Existe no Brasil uma rede ecossocialista que publicou um manifesto, há alguns anos.

O ecossocialismo é uma reflexão crítica. Em primeiro lugar, crítica à ecologia não socialista, à ecologia capitalista ou reformista, que considera possível reformar o capitalismo, atingir um capitalismo mais verde, mais respeitoso ao meio ambiente. Trata-se da crítica e da busca de superação dessa ecologia reformista, limitada, que não aceita a perspectiva socialista, que não se relaciona com o processo da luta de classes, que não coloca a questão da propriedade dos meios de produção. Mas o ecossocialismo é também uma crítica ao socialismo não ecológico, por exemplo, da União Soviética, onde a perspectiva socialista se perdeu rapidamente com o processo de burocratização, e o resultado foi um processo de industrialização tremendamente destruidor do meio ambiente.

Desse modo, o ecossocialismo implica numa crítica profunda das experiências e das concepções tecnocráticas, burocráticas e não ecológicas de construção do socialismo. Isso nos exige também uma reflexão crítica sobre a herança marxista, o pensamento e a tradição marxista, sobre a questão do meio ambiente. Muitos ecologistas criticam Marx por considerá-lo um produtivista, tanto quanto os capitalistas. Tal crítica me parece completamente equivocada. Ao fazer a crítica do fetichismo da mercadoria, é justamente Marx quem coloca a crítica mais radical à lógica produtivista do capitalismo, à idéia de que a produção de mais e mais mercadorias é o objetivo fundamental da economia e da sociedade. O objetivo do socialismo, explica Marx, não é produzir uma quantidade infinita de bens, mas sim reduzir a jornada de trabalho, dar ao trabalhador tempo livre para participar da vida política e social. Portanto, Marx fornece as armas para uma crítica radical do produtivismo e, notadamente, do produtivismo capitalista. No primeiro volume de “O Capital”, ele explica como o capitalismo esgota não só as energias do trabalhador, mas também as próprias forças da Terra, esgotando as riquezas naturais, destruindo o próprio planeta. Assim, essa perspectiva está presente nos escritos de Marx, embora não tenha sido suficientemente desenvolvida.

O problema é que a afirmação de Marx de que o socialismo é a solução da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção foi interpretado por muitos marxistas de forma mecânica: o crescimento das forças produtivas do capitalismo se choca com os limites que são as relações de produção burguesas – a propriedade privada dos meios de produção – e portanto a tarefa da revolução socialista seria simplesmente destruir as relações de produção existentes, a propriedade privada, e permitir assim o livre desenvolvimento das forças produtivas. Parece-me que essa interpretação deve ser criticada, porque ela pressupõe que as forças produtivas sejam algo neutro. O capitalismo as teria desenvolvido até um certo ponto e não pôde ir além porque foi impedido por aquela barreira, aquele obstáculo que deve ser afastado para permitir uma expansão ilimitada. Essa visão deixa de lado o fato de que as forças produtivas existentes não são neutras. Elas são capitalistas em sua dinâmica e seu funcionamento e portanto são destruidoras da saúde do trabalhador, bem como do meio ambiente. A própria estrutura do processo produtivo, da tecnologia e da reflexão científica a serviço dessa tecnologia e desse aparelho produtivo é inteiramente impregnada pela lógica do capitalismo e leva inevitavelmente à destruiçâo dos equilíbrios ecologicos do planeta.

O que se necessita, por conseguinte, é uma visão muito mais radical e profunda do que seja uma revolução socialista. Trata-se de transformar não só as relações de produção, as relações de propriedade, mas a própria estrutura das forças produtivas, a estrutura do aparelho produtivo. Isto é, na minha concepção, uma das idéias fundamentais do ecossocialismo. Há que se aplicar ao aparelho produtivo a mesma lógica que Marx aplicava ao aparelho de Estado a partir da experiência da Comuna de Paris, quando ele diz o seguinte: os trabalhadores não podem apropriar-se do aparelho de Estado burguês e usá-lo a serviço do proletariado, não é possível, porque o aparelho de Estado burguês nunca vai estar a serviço dos trabalhadores. Então, trata-se de destruir esse aparelho de Estado e criar um outro tipo de poder. Essa lógica tem que ser aplicada também ao aparelho produtivo: ele tem que ser destruído ou ao menos radicalmente transformado. Ele não pode ser simplesmente apropriado pelos trabalhadores e posto a trabalhar a seu serviço. Precisa ser estruturalmente transformado.

A título de exemplo, o sistema produtivo capitalista funciona com base em fontes de energia fósseis, responsáveis pelo aquecimento global – o carvão e o petróleo -, de modo que um processo de transição ao socialismo só é possível quando houver a substituição dessas formas de energia pelas energias renováveis, que são a água, o vento e, sobretudo, a energia solar. Por isso, o ecossocialismo implica numa revolução do processo de produção das fontes energéticas. É impossível separar a ideia de socialismo, de uma nova sociedade, da ideia de novas fontes de energia, em particular do sol – alguns ecossocialistas falam do “comunismo solar”, pois entre o calor, a energia do sol, o socialismo e o comunismo haveria uma espécie de afinidade eletiva.

Mas não basta tampouco transformar o aparelho produtivo, é necessário transformar também o estilo, o padrão de consumo, todo o modo de vida em torno do consumo, que é o padrão do capitalismo baseado na produção massiva de objetos artificiais, inúteis e mesmo perigosos. A lista de produtos, mercadorias e atividades empresariais, que são inúteis e nocivas aos indivíduos, é imensa. Tomemos um exemplo evidente: a publicidade. A publicidade é um desperdício monumental de energia humana, de trabalho. Árvores destruídas para gasto de papel, eletricidade e tudo isso para convencer o consumidor de que o sabonete x é melhor que o sabonete y. Eis um exemplo evidente do desperdício capitalista. Logo, se trata de criar um novo modo de consumo e um novo modo de vida, baseado na satisfação das verdadeiras necessidades sociais, que é algo completamente diferente das pretensas e falsas necessidades produzidas artificialmente pela publicidade capitalista.

Transição

Uma reorganização do conjunto do modo de produção e de consumo é necessária, baseada em critérios exteriores ao mercado capitalista: as necessidades reais da população e a defesa do equilíbrio ecológico. Isso significa uma economia de transição ao socialismo, na qual a própria população decide, num processo de planificação democrática, as prioridades e os investimentos.

Essa transição conduziria não só a um novo modo de produção e a uma sociedade mais igualitária, mais solidária e mais democrática, mas também a um modo de vida alternativo, uma nova civilização, ecossocialista, mais além do reino do dinheiro, dos hábitos de consumo artificialmente induzidos pela publicidade e da produção ao infinito de mercadorias inúteis.

Se ficarmos só nisso, porém, seremos criticados como utópicos. Os utópicos são aqueles que apresentam uma bela perspectiva de futuro e a imagem de uma outra sociedade. Isso é obviamente necessário, mas não é suficiente. O ecossocialismo não é só a perspectiva de uma nova civilização, uma civilização da solidariedade – no sentido profundo da palavra, solidariedade entre os humanos, mas também com a natureza –, como também uma estratégia de luta, desde já, aqui e agora. Assim, o ecossocialismo é uma estratégia de convergência das lutas sociais e ambientais, das lutas de classe e das lutas ecológicas, contra o inimigo comum que são as políticas neoliberais, a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o imperialismo norte-americano, o capitalismo global. Este é o inimigo comum dos dois movimentos, o movimento ambiental e o movimento social. Não se trata de uma abstração, há muitos exemplos. No Brasil, como um belo exemplo do que é uma luta ecossocialista, tivemos o combate heróico de Chico Mendes, que pagou com a sua vida o seu compromisso de luta com os oprimidos.

Como essa, há muitas outras lutas. Seja no Brasil, em outros países da América Latina e no mundo inteiro, cada vez mais se dá essa convergência. Mas ela não ocorre espontaneamente, tem que ser organizada. Essa me parece ser a resposta ao desafio, a perspectiva radical de uma transformação revolucionária da sociedade para mais além do capitalismo. Sabendo que o capitalismo não vai desaparecer como vítima de suas contradições, como dizem alguns supostos marxistas (já um grande pensador marxista do começo do século 20 Walter Bejamin dizia que, se temos uma lição a aprender, é que o capitalismo não vai morrer de morte natural, será necessário acabar com ele). Precisamos de uma perspectiva de luta contra o capitalismo, de um paradigma de civilização alternativo e de uma estratégia de convergência das lutas sociais e ambientais, desde agora plantando as sementes dessa nova sociedade.

A alternativa ecossocialista implica, em última análise, numa transformação revolucionária da sociedade. Mas o que significa revolução? Walter Benjamin escrevia o seguinte em 1940: “As revoluções não são as locomotivas da história, como pensávamos. Elas são o ato da humanidade, que viaja nesse trem, de tirar os freios de urgência”. O trem da civilização capitalista, do qual somos todos passageiros, está avançando, com uma velocidade crescente, em direção a um abismo, à catástrofe ecológica. Precisamos puxar os freios de urgência, antes que seja tarde demais.

* Michael Löwy é sóciologo e diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), na França. É autor de “Ecologia e Socialismo” (Cortez, 2005) e organizador da coletânea “Revoluções” (Boitempo, 2009).

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