Archive for the ‘obsolescência do dinheiro’ Category

JAPPE: O dinheiro está se tornando obsoleto?

vendredi, décembre 11th, 2015

Le texte en français est déjà publié ici: L’argent est-il devenu obsolète?

En español aca: http://www.jornada.unam.mx/2011/12/23/opinion/018a1pol

O dinheiro está se tornando obsoleto?

Por Anselm Jappe

A mídia e as instâncias oficiais querem nos deixar já preparados: muito em breve, uma nova crise financeira mundial vai se desencadear, e ela será pior do que a de 2008. Fala-se abertamente de « catástrofes » e de « desastres ». Mas o que vai acontecer depois? Como serão nossas vidas depois de um desabamento dos bancos e das finanças públicas em larga escala? A Argentina já passou por isso em 2002. Ao preço de um empobrecimento em massa, a economia desse país pôde em seguida subir de novo a rampa: mas, nesse caso, tratava-se apenas de um país. Atualmente, todas as finanças européias e norte-americanas correm o risco de naufragar, e a possibilidade da vinda de um salvador está fora de questão.

Em que momento o crash da bolsa não mais será uma novidade da qual tomamos conhecimento pela mídia e passará a ser um acontecimento que perceberemos ao sair na rua? Resposta: quando o dinheiro perder sua função habitual. Seja o dinheiro se tornando raro (deflação), seja ele circulando em quantidades enormes, mas desvalorizadas (inflação). Nos dois casos, a circulação das mercadorias e dos serviços ficará cada vez mais lenta até parar completamente: os seus possuidores não encontrarão quem possa pagar em dinheiro, em dinheiro que tenha « valor » e que permita, por sua vez, comprar outras mercadorias e serviços. Eles vão, então, guardá-las para si. Teremos lojas cheias, mas sem clientes, fábricas em perfeito estado, prontas para funcionar, mas sem ninguém nela trabalhando, escolas aonde os professores não mais vão, porque eles ficaram meses sem salário. Teremos de nos dar conta de uma verdade tão evidente quanto não a víamos: não existe nenhuma crise na própria produção. A produtividade em todos os setores aumenta continuamente. As superfícies cultiváveis da terra poderiam alimentar toda a população do globo, e as fábricas e indústrias produzem até muito mais do que é necessário, desejável e sustentável. As misérias do mundo não se devem, como na Idade Média, a catástrofes naturais, mas a uma espécie de sortilégio que separa os homens de seus produtos.

O que não funciona mais é a « interface » que se coloca entre os homens e o que eles produzem: o dinheiro. Na modernidade, o dinheiro se tornou a « mediação universal » (Marx). A crise nos coloca diante do paradoxo fundador da sociedade capitalista: a produção de bens e de serviços nela não é mais um objetivo, mas somente um meio. O único objetivo é a multiplicação do dinheiro, é investir um real para dele fazer dois. E quando esse mecanismo entra em pane, é toda a produção « real » que sofre e que pode até mesmo se ver totalmente bloqueada. Assim, como Tântalo do mito grego, nós nos encontramos diante das riquezas que, no momento em que queremos pegá-las, retiram-se: já que não podemos pagar. Essa renúncia forçada sempre foi o apanágio do pobre. Mas agora ¡ª o que constitui uma situação inédita ¡ªtoda a sociedade, ou quase, está passível de passar por isso. A última palavra do mercado é, então, deixar morrer de fome no meio das comidas amontoadas por toda parte e que apodrecem, sem que ninguém possa botar a mão.

Entretanto, os detratores do capitalismo financeiro nos garantem que o mercado financeiro, o crédito, e as bolsas não passam de excrescências em um corpo são. Um vez a bolha estourada, haverá turbulências e falências, mas, no fim das contas, tudo não passará de uma sangria salutar depois da qual poderemos recomeçar com um economia real mais sólida. Verdade? Hoje, quase tudo que obtemos é por meio de um pagamento. Pelo menos essa maioria da população que vive na cidade não poderia alimentar a si mesma, (nem se aquecer), nem gozar da iluminação, nem se cuidar, nem se deslocar. Nem mesmo durante três dias. Se o supermercado, a companhia de energia elétrica, o posto de gasolina e o hospital só aceitam dinheiro do « bom » (por exemplo, uma moeda estrangeira forte, e não cédulas impressas pelo próprio banco nacional e completamente desvalorizadas), e se já não há tanto assim, estamos chegando muito rápido à desolação. Se somos bastante numerosos, e estamos prontos para a « insurreição », nós ainda podemos tomar de assalto um supermercado, ou fazer ligações elétricas diretamente nos postes de eletricidade. Mas quando o supermercado não estiver mais abastecido e a central de energia elétrica parar por não poder pagar seus trabalhadores e fornecedores, o que fazer? Poderíamos organizar trocas, formas de solidariedade novas, trocas diretas: será até uma bela ocasião para renovar o « laço social ». Mas quem é que pode acreditar que chegaremos em muito pouco tempo, e em larga escala, ao meio do caos e das pilhagens? Iremos ao campo, dizem alguns, para se apropriar diretamente dos recursos mais básicos. É pena que a União Européia tenha pagado durante décadas aos camponeses para cortarem suas árvores, arrancar suas vinhas e matar seu gado¡K Depois do desabamento dos países do Leste, milhões de pessoas sobreviveram graças a parentes que viviam no campo e às pequenas hortas. Quem poderá dizer o mesmo na França e na Alemanha?

Não se pode ter certeza de que chegaremos a esses extremos. Mas até um desabamento parcial do sistema financeiro nos colocará diante das conseqüências pelo fato de que nós somos consignatários, estamos mão e punho ligados ao dinheiro, confiando-lhe a tarefa exclusiva de garantir o funcionamento da sociedade. O dinheiro existe desde o alvorecer da história, asseguram-nos: mas nas sociedades pré-capitalistas, ele não jogava mais do que um papel marginal. Foi apenas nas últimas décadas que nós chegamos ao ponto em que quase cada manifestação da vida passa pelo dinheiro e em que o dinheiro se infiltrou nos mais recônditos recantos da existência individual e coletiva. Sem o dinheiro que faz as coisas circularem, somos como um corpo sem sangue.

Mas o dinheiro « apenas » é real quando ele é a expressão de um trabalho verdadeiramente executado e do valor no qual o trabalho se representa. O resto do dinheiro não passa de uma ficção que se baseia unicamente na confiança mútua dos atores ¡ª uma confiança que pode se evaporar, como se vê atualmente. Estamos assistindo a um fenômeno não previsto pela ciência econômica: não assistimos à crise de uma moeda, e da economia que ela representa, em proveito de uma outra mais forte. O euro, o dólar, o iene, estão todos em crise, e os raros países ainda com nota AAA pelas agências de rating1 não poderão por conta própria salvar a economia mundial. Nenhuma das receitas econômicas propostas funciona, em lugar nenhum. O mercado livre funciona tão mal quanto o Estado, a austeridade tão mal quanto o aquecimento da economia, o keynesianismo tão mal quanto o monetarismo. O problema se situa em um problema mais profundo. Estamos assistindo a uma desvalorização do dinheiro enquanto tal, à perda de seu papel, portanto, estamos assistindo a sua obsolescência. Mas não por uma decisão consciente de uma humanidade finalmente exausta daquilo de já Sófocles chamava « a mais funesta das invenções dos homens », mas por um processo não controlado, caótico e extremamente perigoso. É como se tirássemos a cadeira de rodas de alguém depois de lhe ter durante muito tempo privado do uso natural das pernas. O dinheiro é nosso fetiche: um deus que nós mesmos criamos, mas do qual cremos depender e em favor do qual estamos prontos a tudo sacrificar para apaziguar suas cóleras.

O que fazer? Vendedores de receitas alternativas não faltam: economia social e solidária, sistema de troca local, moedas seladas2, ajuda mútua cidadã¡K Isso poderia, no melhor dos casos, até funcionar em pequenos nichos, enquanto o restante do entorno ainda funciona. Uma coisa, porém, é certa: não basta « se indignar » diante dos « excessos » do mercado financeiro ou da « avidez » dos banqueiros. Mesmo isto sendo algo bem real, não é a causa, mas a conseqüência do resfôlego da dinâmica capitalista. A substituição do trabalho vivo ¡ª única fonte de valor que, sob forma de dinheiro, é a finalidade da produção capitalista ¡ª pela tecnologia ¡ª que não criam valor ¡ª quase fez esvair-se a fonte de produção de valor. O capitalismo, ao desenvolver, sob a pressão da concorrência, as tecnologias, serrou, ao longo desse processo, o galho sobre o qual se mantinha sentado. Esse processo, que faz parte de sua lógica de base desde o início, superou a soleira crítica nas últimas décadas. A não-rentabilidade do emprego de capital não pôde ser mascarado senão com recursos cada vez mais massivos ao crédito, que é um consumo antecipado dos ganhos esperados para o futuro.Agora, até mesmo esse prolongamento artificial da vida do capital parece ter esgotado todos seus recursos.

Pode-se, assim, colocar-se a necessidade ¡ª mas também constatar a possibilidade, a chance ¡ª de sair do sistema baseado no valor e no trabalho abstrato, no dinheiro e na mercadoria, no capital e no salário. Mas esse salto no desconhecido dá medo, mesmo para aqueles que nunca deixam de fustigar os crimes dos « capitalistas ». No momento, o que prevalece é, antes de tudo, a caça ao vilão especulador. Mesmo que não se possa fazer outra coisa senão compartilhar dessa indignação diante dos lucros dos bancos, é imperativo dizer que ela está muito abaixo de uma crítica do capitalismo enquanto sistema. Não surpreende que Obama e Georges Soros digam que a compreendem. A verdade é bem mais trágica: se os bancos afundarem, se eles falirem em cadeia, se eles pararem de colocar dinheiro nos caixas eletrônicos, corremos o risco de afundar com eles, porque há muito tempo nos foi retirada a possibilidade de viver de outro modo que não seja gastando dinheiro. Será muito bom reaprender ¡ª mas quem sabe a que « preço » isso vai acontecer.

Ninguém pode dizer honestamente que sabe como organizar a vida das dezenas de milhões de pessoas quando o dinheiro tiver perdido sua função. Vai ser bom pelo menos admitir o problema. Talvez seja necessário se preparar para o « pós-dinheiro », bem como para o pós-petróleo.


1 Agências de classificação de risco [N. T.].

2 Trata-se de uma moeda que, à imagem dos bens de consumo (comida, vestimenta, casa) perde seu valor com o passar do tempo. Essa noção, fundada por Silvio Gesell na passagem do século XIX para o XX, baseia-se na idéia que quem possui a moeda tem uma vantagem sobre quem possui o bem, pois quem tem o bem precisa se desfazer dele para que não pereça de algum modo, monetariamente ou fisicamente. Já o detentor da moeda pode adiar sua compra [N. T.].

JAPPE: ¿Ser libres para la liberación?

vendredi, décembre 11th, 2015

[Tem uma tradução pro português postada aqui: JAPPE: falta um horizonte pós-capitalista]

 

¿Ser libres para la liberación?

Anselm Jappe

 

Hay dos noticias. La buena noticia es que nuestro viejo enemigo, el capitalismo, parece encontrarse en una crisis gravissima. La mala noticia es que, por el momento, no se ve ninguna forma de emancipación social que esté realmente a nuestro alcance; además nada puede garantizar que el fin posible del capitalismo desemboque en una sociedad mejor. Es como constatar que la cárcel en donde estamos encerrados desde hace mucho se ha incendiado, pero que las cerraduras de las puertas siguen bloqueadas.

Quisiera iniciar con un recuerdo personal. Visité México por primera vez en1982. Tenía 19 años, y mi mochila en la espalda. Vivía entonces en Alemania. En esos tiempos, se hablaba del “Tercer Mundo” y su miseria, pero otra cosa era descubrirlo personalmente y ver a los niños descalzos pidiendo limosna en la calle. En la ciudad de México, me hospedaba en una especie de hotel de la juventud gestionado por unos suizos. Una noche, al regresar, muy afectado por la visión de la pobreza en la ciudad, empecé a leer un ejemplar de la revista alemana Der Spiegel que se encontraba por ahí. Me fijé en un largo reportaje sobre el estado de la sociedad alemana, que en ese momento, parecía encontrarse en su apogeo. La descripción era de lo más desoladora: sólo se hablaba de depresiones, de farmacodependencias, de familias desestructuradas, de jóvenes desmotivados y del deterioro social. Yo mismo me sentía hundido en un abismo. Ya tenía una cierta experiencia de la crítica teórica y práctica del capitalismo, del cual pensaba todo el mal posible. Pero nunca antes había sentido con tanta fuerza en qué mundo estamos viviendo, un mundo en el cual algunos mueren de hambre y los otros, los que supuestamente se encuentran del lado mejor, son tan infelices que se atiborran de medicamentos o se matan. Sentía que los pobres son infelices y los “ricos” también, de tal forma que el capitalismo es un sufrimiento para todos. Entendí que este sistema, en última instancia, no es provechoso para nadie, que “desarrollar” a los pobres para que se vuelvan como los ricos no serviría de nada, y que la sociedad de la mercancía es el enemigo del género humano.

Al mismo tiempo, en 1982, este sistema parecía fuerte, muy fuerte. Era deprimente considerar la correlación de fuerzas entre quienes, de una forma o de otra, querrían cambiar ese sistema y el sistema mismo, con el consenso que a pesar de todo lograba mantener y con los beneficios materiales que todavía podía distribuir.

Hoy, parece que la situación ha cambiado radicalmente. En estos días, en Europa, las instancias políticas y los medios evocan guiones de posibles catástrofes, del tipo argentino. No es necesario comentar más el hecho de que, en todas partes, se percibe una crisis del capitalismo muy grave, permanente por lo menos desde 2008. Quizás algunos de ustedes han leído la traducción de un artículo mío(1), en donde trato de imaginar lo que pasaría si el dinero, todo el dinero, empezaría a perder su papel, después de un derrumbe financiero y económico. El periódico francés mas importante, Le Monde, lo publicó y muchos lectores lo comentaron : sin embargo, pienso que hace apenas unos años, me hubieran clasificado en la misma categoría que los que ven ovnis…

Una primera observación que es importante hacer es que esta crisis del capitalismo no se debe a las acciones de sus adversarios. Todos los movimientos revolucionarios modernos y casi toda la crítica social siempre imaginaron que el capitalismo iba a ser vencido por fuerzas organizadas, decididas a abolirlo y a sustituirlo por algo mejor. La dificultad era vencer el inmenso poder del capitalismo, que se ubicaba tanto en las armas de sus ejércitos como en lo que había metido en las cabezas de la gente; pero si esto se lograba, la solución estaba al alcance de la mano. De hecho, la existencia de un proyecto de sociedad alternativa era lo que, en última instancia, causaba las revoluciones.

Lo que vemos hoy, es el derrumbe de un sistema, su auto-destrucción, su agotamiento, su hundimiento. Finalmente, se topó con sus límites, con los límites de la valorización del valor, que se ubicaban en su núcleo desde un principio. El capitalismo es esencialmente una producción de valor, que se representa en el dinero. En la producción capitalista, solo lo que permite conseguir dinero tiene interés. Esto no se debe principalmente a la codicia de unos capitalistas malvados. Deriva del hecho de que solo el trabajo puede atribuirles “valor” a las mercancías. Esto implica que las tecnologías no añaden un valor suplementario a las mercancías. Conforme más se usan maquinarias y nuevas tecnologías, menos valor hay en cada mercancía. Pero, la competencia empuja incesantemente a los dueños del capital a utilizar tecnologías que remplacen al trabajo. De esta manera, el capitalismo destruye sus propias bases, y lo hace desde el inicio. Solo el aumento continuo de la producción de mercancías puede contrarrestar el hecho de que cada mercancía contiene cada vez menos “valor”, y por lo tanto también menos plusvalor, traducible en dinero. Son conocidas las consecuencias ecológicas y sociales de esta loca carrera hacia una mayor productividad. Pero es también importante subrayar que la caída de la masa de valor no puede ser compensada eternamente y que provoca finalmente una crisis de la acumulación del capital mismo. En las últimas décadas, una acumulación deficiente ha sido sustituida por la simulación a través de la finanza y el crédito. Ahora, esta forma de vida “bajo perfusión” del capital encontró también sus límites y la crisis del mecanismo de la valorización parece ahora irreversible.

Esta crisis no es, como algunos quieren hacer creer, una trampa de los capitalistas, para imponer medidas aun más desfavorables a los trabajadores y los beneficiarios de ayudas públicas, para desmantelar a las estructuras públicas y aumentar las ganancias de los bancos y de los super-ricos. Es cierto que algunos actores económicos logran sacar grandes beneficios de la crisis, pero esto solo significa que un pastel cada vez más pequeño se divide en porciones más grandes entre un número más reducido de competidores. Es evidente que esta crisis está fuera de control y amenaza a la supervivencia del sistema capitalista en cuanto tal.

Por supuesto, no significa necesariamente que estemos asistiendo al último acto del drama iniciado hace 250 años. Que el capitalismo haya alcanzado sus límites – en términos económicos, ecológicos, energéticos – no significa que vaya a derrumbarse de un día para otro, aunque esto no esté del todo excluido. Más bien se puede prever un largo periodo de declive de la sociedad capitalista, con unos islotes repartidos en todas partes, a veces protegidos por muros, en donde la reproducción capitalista aún funcionaría, y con amplias regiones de tierra quemada, en donde los sujetos post-mercantiles buscarían sobrevivir de cualquier forma posible. El tráfico de drogas y los que rebuscan en los basureros son dos de los rostros más emblemáticos de un mundo que reduce a los seres humanos a la condición de “desechos”, cuyo mayor problema ya no es el de ser explotados sino simplemente de resultar superfluos desde el punto de vista de la economía mercantil, sin tener la posibilidad de regresar a las formas pre-capitalistas de una economía de subsistencia, basada en la agricultura y la artesanía. Ahí donde el capitalismo y su ciclo de producción y consumo dejará de funcionar, no será posible regresar a las antiguas formas sociales. El riesgo es entrar en nuevas configuraciones que combinen los peores elementos de las formaciones sociales anteriores. Y no hay duda de que quienes vivirán en los sectores de la sociedad que aún funcionen van a defender sus privilegios con todo, con armas y técnicas de vigilancia cada vez más perfeccionadas. Como bestia agonizante, el capitalismo puede todavía causar terribles estragos, no solo desencadenando guerras y violencias de todo tipo, sino también provocando daños ecológicos irreversibles, con la diseminación de OGM, de nanopartículas, etc. Entonces, la pésima salud del capitalismo sólo es una condición necesaria para el advenimiento de una sociedad liberada; de ninguna manera es una condición suficiente, en términos filosóficos. El hecho de que la cárcel esté en llamas no nos sirve de nada si la puerta no se abre, o si se abre hacia un precipicio.

Implica una gran diferencia con el pasado: durante más de un siglo, la tarea de los revolucionarios fue encontrar cómo acabar con el monstruo. Si se lograba eso, era inevitable que el socialismo, la sociedad libre – o cualesquiera que fuera su nombre – le sucediera. Hoy, la tarea de los que una vez eran los revolucionarios se presenta de manera invertida: frente a los desastres provocados por las revoluciones permanentes operadas por el capital, se trata de “conservar” algunas adquisiciones esenciales de la humanidad y tentar de llevarlas hacia una forma superior.

Ahora ya no es necesario demostrar la fragilidad del capitalismo, el cual ha agotado su potencial histórico de evolución – y esto es una buena noticia. Otra buena noticia es que tampoco se debe de concebir la alternativa al capitalismo bajo formas que más bien lo continúan. Diría que hay mucho más claridad en lo que se refiere a los objetivos de la lucha hoy en día que hace cuarenta años. Afortunadamente, dos maneras – a menudo entrelazadas – de concebir el post-capitalismo, que dominaron durante todo el siglo XX, han perdido mucha credibilidad, aunque estén lejos de haber desaparecido. Por un lado, el proyecto de superar el mercado con el Estado, la centralización, la modernización, y de confiar la lucha para alcanzar este objetivo a organizaciones de masas dirigidas por funcionarios. Poner a trabajar a todos era la meta principal de estas formas del “socialismo real”: hay que recordar que tanto para Lenin como para Gramsci, la fábrica de Henry Ford era el modelo para la producción comunista. Es cierto que la opción estatal sigue teniendo sus adeptos, sea bajo la forma del entusiasmo con el caudillo Chavez o con el planteamiento de más intervencionismo estatal en Europa. Pero en conjunto, el leninismo en todas sus variantes ha tenido que reducir su control sobre los movimientos contestatarios desde hace treinta años, y esto es muy positivo.

La otra manera de concebir la superación del capitalismo en una forma que más bien pareciera ser su intensificación y modernización se basa en una confianza ciega en los beneficios de las fuerzas productivas y la tecnología. En ambos casos, la sociedad socialista o comunista era concebida esencialmente como una distribución más justa de los frutos del desarrollo de una sociedad industrial por lo demás ampliamente conservada. La esperanza de que la tecnología y las maquinarias vayan a resolver todos nuestros problemas ha sufrido golpes severos desde hace cuarenta años, por el nacimiento de una conciencia ecológica y porque los efectos paradójicos de la tecnología sobre los seres humanos se han hecho más evidentes. (Quisiera recordar en este lugar que Iván Illich, a pesar de las reservas que podría formular sobre algunos aspectos de su obra, ha tenido el enorme mérito de poner en evidencia estos aspectos paradójicos, y quebrantar así la fe en el “Progreso”). Si bien la creencia que el progreso tecnológico lleva al progreso moral y social ya no asume la forma de la exaltación de la siderurgia o las centrales nucleares “socialistas”, o la del elogio incondicional del productivismo, ha encontrado sin embargo una nueva vida en las esperanzas a menudo grotescas que algunos nutren a propósito de la informática y la producción “inmaterial”. Es el caso por ejemplo en ocasión del debate actual sobre la “apropiación”, al cual se ha asociado recientemente los conceptos de “commons” y de “bien común”. Es cierto que toda la historia (y la prehistoria) del capitalismo ha sido la historia de la privatización de los recursos que antes eran comunes, como lo indica el caso ejemplar de los cercamientos en Inglaterra, en los siglos XVII y XVIII. Según una perspectiva ampliamente difundida, por lo menos en el medio de la informática, la lucha por la gratuidad y el acceso ilimitado a los bienes digitales es una batalla que tiene la misma importancia histórica y sería la primera en muchos siglos que los partidarios de la gratuidad y el uso común de los recursos hayan logrado ganar. Sin embargo, los bienes digitales nunca son bienes esenciales. Puede resultar simpático disponer gratuitamente de la última música o de tal video-clip, pero los alimentos, la calefación o la vivienda no son descargables en internet. Al contrario, están sometidos a una rarefacción y a una comercialización cada vez más intensas. Compartir carpetas (file-sharing) puede ser una práctica interesante, pero no es más que un epifenómeno si se compara con la rarefacción del agua potable en el mundo o con el calentamiento climático.

La tecnofilia bajo formas renovadas parece hoy menos “pasada de moda” que el proyecto de tomar el poder y constituye quizás un obstáculo mayor para una ruptura profunda con la lógica del capitalismo. Sin embargo, propuestas como la del decrecimiento, el ecosocialismo, la ecología radical o el retorno de los movimientos campesinos en todo el mundo indican, en su heterogeneidad y con todos sus límites, que una parte de los movimientos contestatarios actuales no creen que el progreso técnico tenga la misión de llevarnos a la sociedad emancipada. Y esto es también una buena noticia…

Entonces, diría que existe actualmente una claridad más grande en cuanto a los lineamientos de una verdadera alternativa al capitalismo. Esbozos como los que se presentaron en el seminario realizado en Cideci a finales de 2009 me parecen totalmente razonables(2). Sobre todo, es muy importante no limitarse a una crítica de la sola forma ultra-liberal del capitalismo, sino de apuntar al capitalismo en su conjunto, es decir a la sociedad mercantil basada en el trabajo abstracto y el valor, el dinero y la mercancía.

Si estamos un poco más seguro de que el capitalismo está en crisis y si tenemos un poco más de claridad en lo que se refiere a las alternativas, surge la siguiente pregunta: ¿cómo llegar a ellas? No quiero plantear aquí consideraciones estratégicas o pseudo-estratégicas, sino más bien preguntarme qué clase de mujeres y de hombres podrán realizar la transformación social necesaria. Ahí es donde radica el problema. Para decirlo de entrada, podemos tener la impresión de que la verdadera “regresión antropológica” provocada por el capital, sobre todo en las últimas décadas, también ha alcanzado a quienes podrían o quisieran oponerse a él. Es un cambio mayor al cual no siempre se le da suficiente atención. La economía mercantil nació en sectores muy limitados de algunos países; posteriormente, conquistó el mundo entero a lo largo de dos siglos y medio, no solo en sentido geográfico sino también al interior de cada sociedad (a veces se llama a ese proceso “colonización interior”). Paulatinamente, cualquier actividad, cualquier pensamiento o sentimiento, adentro de las sociedades capitalistas, tomaba la forma de una mercancía o podía ser satisfecho por mercancías. Se ha descrito a menudo los efectos de la sociedad del consumo y sus consecuencias particularmente nocivas al introducirse en el contexto de sociedades tradicionales consideradas como “atrasadas” (y aquí también podría citar a Iván Illich). Es bien conocido y sobraría repetirlo aquí. Pero no se presenta con suficiente claridad el hecho de que, a causa de esta evolución, la sociedad capitalista ya no aparece dividida simplemente en dominantes y dominados, explotadores y explotados, administradores y administrados, verdugos y víctimas. El capitalismo es, de manera cada vez más visible, una sociedad gobernada por los mecanismos anónimos y ciegos, automáticos e incontrolables, de la producción de valor. Todos parecen a la vez actores y víctimas de este mecanismo, aunque por supuesto los papeles asumidos y las recompensas alcanzadas no son los mismos.

En las revoluciones clásicas, y en su punto más alto en la Revolución española de 1936, el capitalismo era combatido por poblaciones que sentían al capitalismo como una exterioridad, una imposición, una invasión. Le oponían valores, formas de vivir y concepciones de la vida humana totalmente diferentes. Aunque no hay que idealizarlas, constituían de cierta manera una alternativa cualitativa a la sociedad capitalista. Que lo hayan admitido o no, estos movimientos sacaban buena parte de su fuerza de su arraigamiento en ciertas costumbres precapitalistas: en la inclinación al don, a la generosidad, a la vida en colectivo, al desprecio de la riqueza material como fin en sí mismo, en otra percepción del tiempo… Marx tuvo que admitir al final de su vida que lo que quedaba de la antigua propiedad colectiva de la tierra en numerosos pueblos podía constituir una base para una sociedad comunista futura. Hoy, estas formas siguen existiendo, sobre todo entre los pueblos indígenas de América latina y dejo que ustedes digan si pueden formar la base de una sociedad futura emancipada, que tenga profundas raíces en el pasado. Imagino que su respuesta es sí…

Si esto constituye una luz de esperanza, hay que reconocer que significa también a la inversa que, casi en todos los otros lugares, en los países llamados “desarrollados”, en las megapolis del resto del mundo, y hasta en las zonas rurales más apartadas, los individuos sienten cada vez menos a la mercancía omnipresente como un sometimiento ajeno a sus tradiciones, sino, al contrario, como un objeto de deseo. Sus revendicaciones tienen que ver en lo esencial con las condiciones de su participación a este reino, como ya fue el caso del movimiento obrero clásico. Que sea en la forma de un conflicto salarial mediatizado por los sindicatos o de una revuelta en los suburbios, la cuestión es casi siempre la del acceso a la riqueza mercantil. Dicho acceso es generalmente necesario para poder sobrevivir en la sociedad de la mercancía, esto es indudable. Pero es igualmente cierto que estas luchas no plantean la exigencia de superar al sistema actual y crear otras maneras de vivir. De cierta manera, el individuo que pertenece a las sociedades “desarrolladas” de hoy parece más lejos que nunca de una solución emancipatoria. Le faltan las bases subjetivas de una liberación, y por lo tanto también el deseo de esta, porque interiorizó el modo de vida capitalista (competencia, éxito, rapidez, etc.). En general, sus protestas apuntan al miedo de quedar excluido de este modo de vida, o de no alcanzarlo; en muy pocas ocasiones a su mero rechazo. La sociedad mercantil agota las fuentes vivas de la imaginación entre los niños, acosados desde su más temprana edad por verdaderas máquinas para descerebrarlos. Esto es por lo menos tan grave como los recortes en las pensiones, pero no empuja a millones de personas a marchar en las calles o a asediar a los productores de videojuegos y de canales de TV infantiles.

Los movimientos de protesta que aparecen ahora en el escenario no carecen de una cierta ambigüedad. Muchas veces, la gente protesta simplemente porque el sistema no cumple sus promesas. De esta forma, se manifiestan por la defensa del status quo, o más bien del status quo ante. Veamos el movimiento Occupy Wall Street y sus propagaciones. Ahí, se responsabiliza de la crisis actual al sector financiero. Se afirma que la economía, y finalmente la sociedad en su conjunto, están dominadas par la esfera financiera. Según la crítica de la finanza, actualmente muy difundida, los bancos, los seguros, y los fondos especulativos no invierten en la producción real, pero canalizan casi todo el dinero disponible hacia la especulación que solo enriquece a los especuladores, mientras destruye empleos y crea la miseria. El capital financiero, según se dice, puede imponer su ley incluso a los gobiernos de los países más poderosos, cuando es que no prefieren corromperlos. También compran a los medios. Así, la democracia se va vaciando de toda sustancia.

Pero, ¿qué tan seguros estamos de que el poder absoluto de la esfera financiera y las políticas neoliberales que las sostienen son la causa principal de las actuales turbulencias? ¿Y si, al revés, fueran tan solo el síntoma de una crisis mucho más profunda? Lejos de ser un factor que perturba una economía en sí misma sana, la especulación es lo que ha permitido mantener durante las últimas décadas la ficción de la prosperidad capitalista. Sin las muletas ofrecidas por la financiarización, la sociedad de mercado ya se habría derrumbado, con sus empleos y también con su democracia. Lo que se anuncia detrás de las crisis financieras es el agotamiento de las categorías de base del capitalismo: mercancía y dinero, trabajo y valor.

Frente al totalitarismo de la mercancía, no podemos limitarnos a gritar a los especuladores y otros grandes ladrones: “Devuélvenos nuestro dinero”. Más bien es necesario entender el carácter altamente destructor del dinero, de la mercancía, y del trabajo que los produce. Pedir al capitalismo que se sanee, para lograr una mejor repartición y volverse más justo, es una ilusión. Los cataclismos actuales no se deben a una conjuración de la fracción más codiciosa de la clase dominante; son más bien la consecuencia inevitable de los problemas que desde siempre son parte de la naturaleza misma del capitalismo. Vivir a crédito no es una perversión corregible, sino algo como un último estertor para el capitalismo y todos los que viven en este sistema.

Ser conscientes de todo esto permite evitar las trampas del populismo que pretende liberar a “los trabajadores y los ahorradores honestos” (vistos como simples víctimas del sistema) del dominio de un mal personificado por la figura del especulador. Salvar al capitalismo atribuyendo todos sus errores a la actuación de una minoría internacional de “parásitos”: esto ya se ha visto antes en Europa.

La única opción es una verdadera crítica de la sociedad capitalista en todos sus aspectos, y no solo del neoliberalismo. El capitalismo no es únicamente el mercado: el Estado es su otra cara (al mismo tiempo que este está estructuralmente sometido al capital). El Estado nunca puede ser un espacio público de decisión soberana. Incluso en cuanto binomio Estado-Mercado, el capitalismo no es, o ya no es, una mera coacción que se impone desde fuera a unos sujetos siempre refractarios. Desde hace mucho tiempo, el modo de vida que ha creado el capitalismo pasa casi por doquier por altamente deseable y su fin posible por una catástrofe. Invocar a la “democracia” (incluso “directa” o “radical”) no sirve para nada si los sujetos a los que se pretende restituir su voz son unos reflejos del sistema que los contiene.

Es por esto que la consigna “Somos el 99%”, que según se dice ha sido inventada por un ex publicitario pasado a la anti-publicidad (adbusters), Kalle Lasn, y que los medios consideran como “genial”, me parece delirante. ¿Bastaría con liberarse del dominio del 1% más rico y más poderoso de la población para que todos los demás vivieramos felices? Entre estos “99%”, ¿cuántos pasan horas frente a su televisión, explotan a sus empleados, roban a sus clientes, estacionan a su carro en la banqueta, comen en McDonald’s, pegan a su mujer, dejan a sus niños jugar con videjuegos, hacen turismo sexual, gastan su dinero comprando ropa de marca, consultan a sus celulares cada dos minutos, es decir son parte integrante de la sociedad capitalista? Herbert Marcuse ya había definido con mucha claridad la paradoja, el verdadero círculo vicioso de cualquier empresa de liberación (el cual, desde entonces, no dejó de profundizarse): los esclavos ya tienen que ser libres para alcanzar su liberación.

Algunos podrán considerar que estas críticas son excesivas, poco generosas o incluso sectarias. Se dirá que lo importante es que la gente por fin vuelva a moverse, a protestar, que abran los ojos. Que luego van a profundizar las razones de su rebelión; que su grado de consciencia va a elevarse. Es posible y de hecho nuestra salvación depende de esto. Pero, para llegar a este punto, es indispensable criticar todo lo que hay que criticar en estos movimientos, en lugar de correr detrás de ellos. No es cierto que cualquier oposición, cualquier protesta, es en sí misma una buena noticia. Con los desastres que se van a producir en cadena, con las crisis económicas, ecológicas y energéticas que van a profundizarse, es absolutamente seguro que la gente va a rebelarse en contra de lo que le suceda. Pero toda la cuestión es saber cómo van a reaccionar: pueden ponerse a vender droga, enviar a sus esposas a prostituirse; pueden robar las zanahorias orgánicas cultivadas por un campesino o enrolarse en una milicia; pueden organizar una inútil masacre de banqueros o dedicarse a la caza a los migrantes. Pueden limitarse a organizar su propia supervivencia en medio de la debacle. Pueden adherir a movimientos fascistas y populistas, que designan unos culpables a la venganza popular. O, al contrario, pueden luchar para la construcción colectiva de una mejor manera de vivir sobre las ruinas dejadas por el capitalismo. No todo el mundo se va a precipitar sobre esta última opción; incluso sigue siendo la más difícil. Si atrae demasiado poca gente, quedará aplastada. Entonces, lo que podemos hacer hoy, es esencialmente esto: obrar para que las protestas que de cualquier modo no dejarán de surgir, tomen las decisiones apropiadas. Sin lugar a dudas, la presencia de rasgos procedentes de las sociedades precapitalistas puede ampliamente contribuir a la construcción del buen camino.

____________________
Notas:
1) « ¿Se volvió obsoleto el dinero? », La Jornada, 23 de diciembre de 2011.
2) Me refiero en particular a la ponencia de Jérôme Baschet, « Anticapitalismo/postcapitalismo ».

Ponencia realizada en el « IIº Seminario Internacional de reflexión y análisis “Planeta tierra: movimientos antisistémicos”. CIDECI, dic-30 (20011) a ene-02 (2012). »

JAPPE: falta um horizonte pós-capitalista

jeudi, mai 21st, 2015

Protestos: falta um horizonte pós-capitalista

Teórico próximo ao zapatismo sustenta: embora valorosas, manifestações recentes não superam, ainda, lógica da mercadoria. Parte da solução requer rever obsessão por consumir, acumular e competir

Por Anselm Jappe

| Tradução: Bruna Bernacchio

 fonte: http://outraspalavras.net/posts/protestos-falta-um-horizonte-pos-capitalista/

Há duas notícias. A boa é que nosso velho inimigo, o capitalismo, parece encontrar-se em uma crise gravíssima. A má notícia é que, neste momento, não se vê nenhuma forma de emancipação social que esteja realmente a nosso alcance; além disso, nada pode garantir que o possível fim do capitalismo resulte em uma sociedade melhor. É como constatar que a prisão em que estamos há muito incendiou-se, mas as fechaduras das portas continuam bloqueadas…Gostaria de iniciar com um recordo pessoal. Visitei o México pela primeira vez em 1982. TInha 19 anos e uma mochila nas costas. Vivia na Alemanha. Naqueles tempos, falava-se do “Terceiro Mundo” e sua miséria; mas outra coisa era descobrí-lo pessoalmente e ver as crianças descalças pedindo esmola na rua. Na Cidade do México, hospedava-me em uma espécie de hotel da juventude, gestionado por uns suiços. Uma noite, ao regressar, muito afetado pela visão da pobreza na cidade, comecei a ler um exemplar da revista alemã Der Spiegel, que estava por ali. Demorei-me em uma grande reportagem sobre o estado da sociedade alemã, que naquele momento, parecia encontrar-se em seu apogeu. A descrição era a mais desoladora: só se falava em depressões, dependências farmacêuticas, famílias desestruturadas, jovens desmotivados e deterioração social. Eu me sentia mergulhado num abismo. Já tinha uma certa experiência da crítica teórica e prática do capitalismo, do qual pensava todo o mal possível. Mas nunca antes havia sentido com tanta força o mundo em que vivemos, um mundo onde alguns morrem de fome, e os outros — os que supostamente estão no lado melhor — são tão infelizes que se entopem de medicamentos ou se matam. Sentia que os pobres são infelizes e os “ricos” também, de forma que o capitalismo é um sofrimento para todos. Entendi que esse sistema, em ultima instância, não é proveitoso para ninguém, que “desenvolver” os pobres para que vivam como os ricos não serviria de nada, e que a sociedade da mercadoria é inimiga da espécie humana.Ao mesmo tempo, em 1982, esse sistema parecia forte, muito forte. Era deprimente considerar a correlação de forças entre quem, de uma forma ou de outra, queria mudar esse sistema; e o sistema mesmo, com o consenso que, apesar de tudo, conseguia manter e com os benefícios materiais que ainda podia distribuir.Hoje, a situação parece ter mudado radicalmente. Nesses dias, na Europa, as instâncias políticas e a mídia descrevem roteiros de possíveis catástrofes, do tipo argentino. Não é necessário comentar mais o fato de que, em todas as partes, percebe-se uma crise do capitalismo muito grave, permanente pelo menos desde 2008. Talvez alguns de vocês já tenham lido a tradução de um artigo meu (1), onde trato de imaginar o que passaria se o dinheiro, todo o dinheiro, começasse a perder seu papel, depois de um colapso financeiro e econômico. O jornal francês mais importante, Le Monde, publicou-o e muitos leitores comentaram. Penso que, há poucos anos, teriam me classificado na mesma categoria que aqueles que veem ovnis…Uma primeira observação importante é que essa crise do capitalismo não se deve às ações de seus adversários. Todos os movimentos revolucionários modernos e quase toda a crítica social sempre imaginaram que o capitalismo seria vencido por forças organizadas, decididas a aboli-lo e a substituí-lo por algo melhor. A dificuldade era vencer o imenso poder do capitalismo, que se instalava tanto nas armas de seus exércitos como no que havia metido nas cabeças das pessoas; mas se isso fosse alcançado, a solução estava ao alcance da mão. De fato, a existência de um projeto de sociedade alternativa era o que, em ultima instância, provocava as revoluções.O que vemos hoje, é a derrubada de um sistema, sua auto-destruição, seu esgotamento, seu colapso. Finalmente, topou com seus limites, com os limites da valorização do valor, que estava em seu núcleo desde o princípio. O capitalismo é essencialmente uma produção de valor, que se representa em dinheiro. Na produção capitalista, só o que permite conseguir dinheiro importa. Isso não se deve principalmente à ganância de uns capitalistas malvados. Deriva do fato de que só o trabalho pode atribuir “valor” às mercadorias. Isso implica que as tecnologias não adicionam um valor complementar às mercadorias. Quanto mais as máquinas e novas tecnologias são utilizadas, menos valor há em cada mercadoria. Mas a competição empurra incessantemente os donos do capital a utilizar tecnologias que substituam o trabalho. Dessa maneira, o capitalismo destrói suas próprias bases, e o faz desde o início. Só o aumento contínuo da produção de mercadorias pode compensar o fato de que cada mercadoria tem cada vez menos “valor”, e portanto também menos mais-valia, conversível em dinheiro. São conhecidas as consequências ecológicas e sociais dessa louca corrida em direção a uma maior produtividade. Mas é também importante sublinhar que a queda da massa de valor não pode ser compensada eternamente e provoca, por fim, uma crise da acumulação do próprio capital. Nas últimas décadas, uma acumulação deficiente tem sido substituída pela simulação através da finanças e do crédito. Agora, essa forma de vida “baixo perfusão” do capital encontrou também seus limites e a crise do mecanismo de valorização parece irreversível.Essa crise não é, como alguns querem acreditar, uma armadilha dos capitalistas, para impor medidas ainda mais desfavoráveis aos trabalhadores e aos que se utilizam de serviços e políticas públicas; para desmantelar as estruturas públicas e aumentar os lucros dos bancos e dos super-ricos. É certo que alguns atores econômicos conseguem tirar grande benefício da crise, mas isso só significa que um bolo cada vez menor se divide em porções cada vez maiores, entre um número mais reduzido de competidores. É evidente que essa crise está fora de controle e ameaça a sobrevivência do sistema capitalista enquanto tal.Com certeza, não significa necessariamente que estejamos assistindo ao último ato do drama iniciado há 250 anos. Que o capitalismo tenha alcançado seus limites – em termos econômicos, ecológicos, energéticos – não significa que vai cair de um dia pra outro, ainda que isso não esteja de todo excluído. É mais realista prever um longo período de declínio da sociedade capitalista, com algumas poucas ilhas por todas as partes, às vezes protegidos por muros, onde a reprodução capitalista ainda funcionaria, e com amplas regiões de terras queimadas, onde os sujeitos pós-mercantis buscariam sobreviver de qualquer forma possível. O traficante de drogas e os que reviram as lixeiras são dois dos rostos mais emblemáticos de um mundo que reduz alguns seres humanos à condição de resto, de gente cujo maior problema já não é ser explorado se não de simplesmente tornar-se supérfula do ponto de vista da economia mercantil, sem ter a possibilidade de regressar às formas pré-capitalistas de uma economia de subsistência, baseada na agricultura e no artesanato. Onde o capitalismo e seu ciclo de produção e consumo deixar de funcionar, não será possível regressar às antigas formas sociais. O risco é entrarmos em novas configurações que combinem os piores elementos das formações sociais anteriores. E não há dúvida de que quem for viver nos setores da sociedade que ainda funcionem vai defender seus privilégios com tudo, armas e técnicas de vigilância cada vez mais aperfeiçoadas. Como uma besta agonizante, o capitalismo pode ainda causar terríveis estragos, não só desencadeando guerras e violências de todo o tipo, mas também provocando danos ecológicos irreversíveis, com a disseminação de organismos geneticamente modificados (OGM), de nanopartículas etc. Então, a péssima saúde do capitalismo é apenas uma condição necessária para o advento de uma sociedade liberada; de nenhuma maneira é uma condição suficiente, em termos filosóficos. O fato de que a prisão está em chamas não nos serve de nada se a porta não abre, ou se abre para um precipício.Implica uma grande diferença com o passado: durante mais de um século, a tarefa dos revolucionários foi encontrar formas de acabar com o monstro. Se chegasse a isso, era inevitável que o socialismo, a sociedade livre – ou qualquer que fosse seu nome – adviria. Hoje, a tarefa dos que foram os revolucionários apresenta-se de maneira invertida: frente aos desastres provocados pelas revoluções permanentes operadas pelo capital, trata-se de “conservar” algumas conquistas essenciais da humanidade e tentar levá-las até uma forma de organização social superior.Agora já não é necessário demonstrar a fragilidade do capitalismo, cujo potencial histórico de evolução se esgotou – e isso é uma boa notícia. Outra boa notícia é que tampouco se deve conceber a alternativa ao capitalismo sob formas que o continuam. Diria que há, hoje, muito mais clareza no que se refere aos objetivos da luta do que há quarenta anos. Felizmente, duas maneiras – muitas vezes entrelaçadas – de conceber o pós-capitalismo, que foram dominantes durante todo o século XX, perderam muita credibilidade, ainda que estejam longe de desaparecer. Por um lado, o projeto de superar o mercado com o Estado, a centralização, a modernização, e de confiar a luta para alcançar esse objetivo a organizações de massas dirigidas por funcionários. Colocar todos para trabalhar era a meta principal dessas formas de “socialismo real”. É preciso recordar que, tanto para Lênin quanto para Gramsci, a fábrica de Henry Ford era o modelo para a produção comunista. Claro que a opção estatal continua tendo seus adeptos, seja sob a forma do entusiasmo em relação a Chávez, ou com o planejamento de mais intervencionismo estatal na Europa. Mas no geral, o leninismo, em todas as suas variantes, teve que reduzir sua influência sobre os movimentos de contestação nos últimos trinta anos atrás, e isso é muito positivo.A outra maneira de conceber a superação do capitalismo sob uma forma que mais parece ser sua intensificação e modernização baseia-se em uma confiança cega nos benefícios das forças produtivas e da tecnologia. Em ambos os casos, a sociedade socialista ou comunista era concebida essencialmente como uma distribuição mais justa dos frutos do desenvolvimento de uma sociedade industrial — aliás, amplamente conservada. A esperança de que a tecnologia e as máquinas possam resolver todos os nossos problemas sofreu golpes severos desde há quarenta anos atrás, devido ao nascimento de uma consciência ecológica e porque os efeitos paradoxais da tecnologia sobre os seres humanos se fizeram mais evidentes. (Gostaria de recordar aqui que Iván Illich, apesar das ressalvas que poderíamos fazer sobre alguns aspectos de sua obra, teve o enorme mérito de colocar em evidência esses aspectos paradoxais, e de quebrar, assim, a fé no “Progresso”).Mesmo a crença de que o progresso tecnológico leva ao progresso moral e social já não assume a forma de exaltação da siderúrgica ou das centrais nucleares “socialistas”, ou do elogio incondicional ao produtivismo; encontrou, porém, uma nova vida nas esperanças frequentemente grotescas que alguns nutrem pela informática ou pela produção “imaterial”. É o que ocorre, por exemplo, em torno do debate atual sobre a “apropriação”, ao qual foram associados, recentemente, os conceitos de “commons” e “bem comum”. É certo que toda a história (e pré-história) do capitalismo tem sido a história da privatização dos recursos que antes eram comuns, como indica o caso exemplar dos cercamentos de terra na Inglaterra, nos séculos XVII e XVIII. Segundo uma perspectiva amplamente difundida, pelo menos no meio da informática, a luta pela gratuidade e o acesso ilimitado aos bens digitais é uma batalha que tem a mesma importância histórica e seria a primeira vez, em muitos séculos, que os partidários da gratuidade e do uso comum dos recursos chegaram a vencer. Contudo, os bens digitais nunca são bens essenciais. Pode parecer simpático dispor gratuitamente da última música ou videoclipe, mas os alimentos, a calefação ou a moradia não estão disponíveis para download. Ao contrário, estão submetidos a uma escassez e a uma comercialização cada vez mais intensas. Compartilhar arquivos pode ser uma prática interessante, mas não é mais do que um epifenômeno, se comparado com a escassez de água potável no mundo ou com o aquecimento climático.A tecnofilia sob formas renovadas parece hoje menos “passada de moda” que o projeto de tomar o poder e constitui, talvez, um obstáculo maior para uma ruptura profunda com a lógica do capitalismo. Porém, propostas como a do decrescimento, o ecosocialismo, a ecologia radical ou o retorno dos movimentos camponeses em todo o mundo indicam, em sua heterogeneidade e com todos seus limites, que uma parte dos movimentos contestatários atuais não creem que o progresso técnico tenha a missão de nos levar à sociedade emancipada. E isso é também uma boa notícia…Portanto, diria que existe atualmente uma clareza maior quanto aos caminhos de uma verdadeira alternativa ao capitalismo. Esboços como os que se apresentaram no seminário realizado em Cideci aos finais de 2009 me parecem totalmente razoáveis (2). Sobretudo, é muito importante não nos limitarmos a críticar apenas a forma ultraliberal do capitalismo — e sim apontarmos nossa crítica para o capitalismo em seu conjunto, ou seja, a sociedade mercantil baseada no trabalho abstrato e no valor, no dinheiro e na mercadoria.Se estamos um pouco mais seguros de que o capitalismo está em crise, e se temos um pouco mais de clareza no que se refere às alternativas, surge a seguinte pergunta: como chegar a elas? Não quero levantar aqui considerações estratégicas ou pseudo-estratégicas, mas sim perguntar-me que tipo de mulheres ou de homens poderão realizar a transformação social necessária. Aí estão as raízes do problema. Para começar, podemos ter a impressão de que a verdadeira “regressão antropológica” provocada pelo capital, sobretudo nas últimas décadas, também alcançou quem poderia ou gostaria de se opor a ele. É uma mudança maior, à qual não sempre se dá suficiente atenção. A economia mercantil nasceu em setores muito limitados de alguns países; posteriormente, conquistou o mundo inteiro ao longo de dois séculos e meio, não só em sentido geográfico mas também no interior de cada sociedade (às vezes, chama-se esse processo de “colonização interna”). Pouco a pouco, qualquer atividade, qualquer pensamento ou sentimento, dentro das sociedades capitalistas, tomava a forma de uma mercadoria ou poderia ser satisfeito por mercadorias. Os efeitos da sociedade do consumo, e suas consequências particularmente nocivas ao introduzir-se no contexto das sociedades tradicionais consideradas “atrasadas” foram bem descritos (e aqui também poderíamos citar a Ivan Illich). Mas não está suficientemente claro o fato de que, devido a esta evolução, a sociedade capitalista já não aparece dividida simplesmente entre dominantes e dominados, explorados e exploradores, administradores e administrados, carrascos e vítimas. O capitalismo é, de maneira cada vez mais visível, uma sociedade governada pelos mecanismos anônimos e cegos, automáticos e incontroláveis, da produção de valor. Todos parecem ao mesmo tempo atores e vítimas desse mecanismo — ainda que, logicamente, os papéis assumidos e as recompensas alcançadas não sejam as mesmas.Nas revoluções clássicas, e no mais alto na Revolução Espanhola de 1936, o capitalismo era combatido por populações que o sentiam como uma exterioridade, uma imposição, uma invasão. Invocando valores, formas de viver e de concepção da vida humana totalmente diferentes. Sem tentar idealizá-las, constituíam, de certa maneira, uma alternativa qualitativa à sociedade capitalista. Mesmo que não o admitissem, esses movimentos extraíam boa parte de sua força do seu enraizamento em certos costumes pré-capitalistas: na inclinação ao dom, à generosidade, à vida em coletivo, ao desprezo pelas riquezas materiais como fim em si mesmo, e em outra percepção de tempo… Marx teve que admitir, ao final de sua vida, que o que restava da antiga propriedade coletiva de terra, em diversos povos, podia constituir uma base para uma sociedade comunista futura. Hoje, essas formas seguem existindo, sobretudo entre os povos indígenas da América Latina e deixo que vocês digam se podem formar a base de uma sociedade futura emancipada, que tenha profundas raízes no passado. Imagino que sua resposta é sim…Se isso constitui uma luz de esperança, é necessário reconhecer que significa também, por outro lado, que quase em todos os outros lugares, nos países chamados “desenvolvidos”, nas megalópoles do resto do mundo, e até nas zonas rurais mais remotas, os indivíduos sentem cada vez menos a mercadoria onipresente como uma submissão alheia às suas tradições. Talvez ela seja, ao contrário, um objeto de desejo. As reivindicações têm a ver essencialmente com as condições de sua participação neste reino, como já ocorreu com o movimento operário clássico. Seja na forma de um conflito salarial intermediado por sindicatos, ou de uma revolta nos subúrbios, a questão é quase sempre a de acesso à riqueza mercantil. É óbvio que tal acesso é geralmente necessário, para poder sobreviver na sociedade da mercadoria. Mas é igualmente certo que essas lutas não vislumbram a exigência de superar o sistema atual e criar outras maneiras de viver. De certo modo, o indivíduo que pertence às sociedades “desenvolvidas” de hoje parece estar mais distante do que nunca de uma solução emancipatória. Faltam-lhe as bases subjetivas de uma liberação; portanto, também o desejo desta, porque interiorizou o modo de vida capitalista (concorrência, êxito, rapidez etc). Em geral, seus protestos apontam o medo de ficar excluído desse modo de vida, ou de não alcançá-lo; em muitas poucas ocasiões o mero rechaço. A sociedade mercantil esgota as fontes vivas da imaginação entre as crianças, abusadas desde sua mais precoce idade por verdadeiras máquinas para descerebrá-los. Isso é ao menos tão grave como os cortes nas aposentadorias, mas não empurra milhões de pessoas a marchar nas ruas ou a assediar os produtores de videogames e de canais de televisão infantis.Os movimentos de protesto que aparecem agora no cenário não carecem de uma certa ambiguidade. Muitas vezes, as pessoas protestam simplesmente porque o sistema não cumpre com suas promessas. Dessa forma, manifestam-se pela defesa do status quo, ou ainda do status quo ante. Vejamos o movimento Occupy Wall Street e suas propagações. Ali, responsabiliza-se o setor financeiro, e Wall Street, pela crise atual. Afirma-se que a economia, e a sociedade em seu conjunto, estão dominadas pela esfera financeira. Segundo uma crítica das finanças, atualmente muito difundida, os bancos, os seguros, e os fundos especulativos não investem na produção real, mas canalizam quase todo o dinheiro disponível à especulação, que só enriquece aos investidores, destruindo empregos e criando miséria. O capital financeiro, segundo se disse, pode impor sua lei inclusive aos governos dos países mais poderosos — quando não prefere corrompê-los. Também compram aos meios de comunicação. Assim, a democracia se vai esvaziando de toda substância.Mas, quão seguros estamos de que o poder absoluto da esfera financeira, e as políticas neoliberais que as sustentam, são a causa principal das atuais turbulências? E se, ao invés, forem apenas o sintoma de uma crise muito mais profunda? Longe de ser um fator que perturba uma economia saudável em si mesma, a especulação é o que permitiu manter, durante as últimas décadas, a ficção da prosperidade capitalista. Sem as muletas oferecidas pela financeirização, a sociedade de mercado já teria caído, com seus empregos e também sua democracia. O que se anuncia por trás das crises financeiras é o esgotamento das categorias de base do capitalismo: mercadoria e dinheiro, trabalho e valor.Frente ao totalitarismo da mercadoria, não podemos nos limitar a gritar aos especuladores e outros grandes ladrões: “Devolvam nosso dinheiro!”. É necessário entender o caráter altamente destruidor do dinheiro, da mercadoria e do trabalho que os produz. Pedir ao capitalismo que se cure, para alcançar uma melhor repartição e tornar-se mais justo, é uma ilusão. As catástrofes atuais não se devem a uma conspiração da fração mais gananciosa da classe dominante; é muito mais a consequência inevitável dos problemas que são, desde sempre, parte da natureza mesma do capitalismo. Viver a crédito não é uma perversão corrigível, se não algo como um último espasmo do capitalismo..Estar conscientes de tudo isso permite evitar as armadilhas de um populismo que pretende libertar “os trabalhadores e produtores honestos” (vistos como simples vítimas do sistema) do domínio de um mal personificado pela figura do especulador. Salvar o capitalismo, atribuindo todos seus erros à atuação de uma minoria internacional de “parasitas”: isso já se viu antes na Europa.A única opção é uma verdadeira crítica da sociedade capitalista em todos os seus aspectos, e não só do neoliberalismo. O capitalismo não é unicamente o mercado: o Estado é sua outra cara (ao mesmo tempo que este está estruturalmente submetido ao capital). O Estado nunca pode ser um espaço público de decisão soberana. Inclusive em relação ao binômio Estado-Mercado, o capitalismo não é, ou já não é, uma mera coação que se impõe desde fora a sujeitos sempre refratários. Há muito tempo, o modo de vida criado pelo capitalismo é visto quase que em toda parte como altamente desejável — e seu fim possível, como uma catástrofe. Invocar a democracia (inclusive “direta” ou “radical”) não serve para nada, se os sujeitos cuja voz se pretende restituir são reflexos do sistema que os contém.É por isso que a assinatura “Somos os 99%”, que segundo se disse foi inventada por um ex-publicitário passado à anti-publicidade (Adbusters), Kalle Lasn, e que os meios consideram como “genial”, me parece delirante. Bastaria libertar-se do domínio dos 1% mais rico e mais poderoso da população para que todos os demais vivamos felizes? Entre esses 99%, quantos passam horas em frente a sua televisão, exploram seus empregados, roubam seus clientes, estacionam seu carro na calçada, comem no McDonald’s, batem em sua mulher, deixam seus filhos jogar videogames, fazem turismo sexual, gastam seu dinheiro comprando roupa de marca, consultam seus celulares a cada dois minutos — ou seja são parte integrante da sociedade capitalista? Herbert Marcuse já havia definido com muita clareza o paradoxo do verdadeiro círculo vicioso de qualquer esforço de libertação que, desde então, não deixou de se reiterar: para alcançar sua libertação, os escravos têm que ser livres.* * *Alguns poderão considerar que essas críticas são excessivas, pouco generosas ou mesmo sectárias. Argumentarão que o importante é que as pessoas por fim voltem a se mover, a protestar, que abram os olhos. Que as razões de sua rebelião irão se aprofundar; que seu grau de consciência vai elevar-se. É possível e, de fato, nossa salvação depende disso. Mas, para chegar a esse ponto, é indispensável criticar tudo o que é necessário criticar nesses movimentos, ao invés de correr atrás deles.Não é certo que qualquer oposição, qualquer protesto, é em si mesmo uma boa notícia. Com os desastres em cadeia que poderão ocorrer, com as crises econômicas, ecológicas e energéticas que vão se aprofundar, é absolutamente seguro que as pessoas vão se rebelar contra o que aconteça. Mas toda a questão é de saber como vão reagir: podem roubar as cenouras orgânicas cultivadas por um camponês ou envolver-se em uma milícia; podem organizar um inútil massacre de banqueiros o dedicar-se à caça aos imigrantes. Podem limitar-se a organizar sua própria sobrevivência no meio do desastre. Podem aderir a movimentos fascistas, que designam alguns culpados para vingança popular. Ou, ao contrário, podem lutar para a construção coletiva de uma melhor maneira de viver sobre as ruínas deixadas pelo capitalismo.Nem todo mundo irá se lançar a esta última opção; inclusive, ela continua sendo a mais difícil. Se atrair muito pouca gente, será esmagada. Por isso, o que podemos fazer hoje é essencialmente agir para que os protestos, que de qualquer modo não deixaram de surgir, tomem um bom caminho. Sem dúvidas, a presença dos traços procedentes das sociedades pré-capitalistas (em resistência anticapitalista pluri-secular) pode contribuir para a construção do bom caminho.

Notas:

(1) « O dinheiro tornou-se obsoleto? », La Jornada, 23/12/2011.

(2) Refiro-me em particular à palestra de Jérôme Baschet, «Anticapitalismo/postcapitalismo». Palestra realizada no “IIº Seminario Internacional de reflexión y análisis “Planeta tierra: movimientos antisistémicos”. CIDECI, dez-30 (20011) a jan-02 (2012).”