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ARANTES: O nome da crise

samedi, avril 11th, 2015

Publicado em

ARANTES: No tempo das emergências

dimanche, décembre 28th, 2014

No tempo das emergências | Uma entrevista com Paulo Arantes

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No tempo das emergências | Uma entrevista com Paulo Arantes

14.05.09_Paulo Arantes_No tempo da emergênciaCarla Rodrigues entrevista Paulo Arantes.*

Há 40 anos formando gerações de pesquisadores na USP, Paulo Arantes é um filósofo na completa acepção do termo. Sua filosofia é feita da mesma matéria que dá titulo ao seu livro, O novo tempo do mundo, da coleção Estado de Sítio, coordenada por ele na Boitempo Editorial, e carregada de uma dura ironia que permeia seu discurso, seja nas entrevistas, seja na escrita dos nove ensaios que configuram o estilo das 460 páginas de um autor que se define como pesquisador da “teoria critica do mundo contemporâneo”. Teoria critica voltada contra o capitalismo e todas as suas formas de opressão econõmica, social, cultural ou política.

Arantes contesta os argumentos dos que, de tempos em tempos, reivindicam para o Brasil “um choque cavalar de capitalismo”. A rigor, escreve ele, o Brasil padece desde o início de um excesso de capitalismo. “Nascemos como um negócio.” Na mesma linha de critica ao contemporâneo, Arantes traz entre seus escritos um longo texto sobre as manifestações políticas que tomaram as ruas desde o ano passado. Em “Depois de junho a paz será total”, volta sua verve crítica para pensar as reiviIidicações de que protestos políticos só são legítimos se forem pacíficos e o significado de o Brasil vir a sediar dois megaeventos, Copa e Olimpíada. “São rituais de massa e como tal, um tremendo dispositivo de governo, algo como um não menos tremendo centro emissor de comandos pacificadores, pois é preciso que durante a Copa a paz seja total. Até os ambulantes serão vacinados.” Estado de exceção, argumenta, em que cada arena para os jogos serã uma situação de sítio, e cada sede, um zoneamento de ocupação militar. E se alguém lhe perguntar pelo legado dos jogos, o tiro é certeiro: “Quando o megaevento se for, tudo isso ficará na praia à espera da próxima maré, repetindo-se religiosamente os mesmos rituais de segurança, um ponto zero acima. Se há um real legado da Copa, é justamente o da atualização acelerada dos aparatos coercitivos de vigilância e punição.” Capitalismo e segurança, negócios e opressão, novidade e história, articulações que aninam a combinação entre sarcasmo e agudeza intelectual de Paulo Arantes.

A crítica ao capitalismo se relaciona com o título do seu livro, O novo tempo do mundo. Há, seguindo sua referência a David Harvey (geógrafo marxista britânco), uma ênfase no aqui e agora, um tempo opressor, sem futura. O título também poderia dar ao leitor a chance de ser otimista? O que é o novo tempo do mundo?

Fico até desconfiado. É a primeira vez que alguém vislumbra uma nota positiva no que digo ou escrevo. Quem sabe se a sua boa impressão de que há ainda uma chance oferecida ao leitor de ser otimista não deriva da sensação de que, afinal, estamos mesmo atinando com as coisas novas e ruins que nos levaram às cordas. Pois o limiar em que atolamos e apodrecemos, de colapso em colapso, quanto mais as forças produtivas se desenvolvem, juntamente com os estados de violência própria do governo da emergência, não deixa de ser justamente isto mesmo, um limiar. A mutação que rebateu as grandes expectativas modernas sobre as urgência do presente não é necessariamente uma má notícia. Ela é, pelo contrário, uma espantosa novidade depois de dois séculos de espera, desde que a encaremos como tal, nos seus próprios termos. Para isso é preciso fazer uma faxina em regra do nosso repertório, a começar pelo intragável jargão progressista-participativo, que é o discurso do poder que simula ainda estar conduzindo sociedades orientadas para o futuro. Política numa era de expectativas decrescentes só pode ser gestionária e policial

Quando “o futuro se aproxima do presente explosivamente carregado de negações”, o capitalismo do desastre como oportunidade de acumulação apenas multiplica os regimes de segurança dispostos à beira do abismo, ainda que compulsivamente, pois assim o exige a lógica da valorização: estenda indefinidamente a fronteira autodestrutiva da predação. Emparedados nesse limiar, carecemos é de uma antipolítica que saiba decifrar o renascimento paradoxal de expectativas que se abram para outras dimensões temporais. Se uma esquerda sem futuro ainda tem futuro, devemos procurá-lo noutra parte.

O último ensaio do livro é uma grande leitura das manifestações de junho do ano passado, que tem como fio condutor uma crítica ao uso do termo insurgência. O que o senhor acha que se perde e que se ganha com “inssurgência”?

Essa pergunta também deveria ser feita ao diplomata americano [Dennis Heame, ex-cônsul Geral dos EUA no Rio] cujo olho clínico enxergou no Programa de Pacificação das Favelas o que os manuais da contrainsurgência contemporânea recomendam e seu país aplica um pouco por toda parte no mundo: trabalho social com armas. Ele não hesitaria muito na resposta: no sul global, desenvolvimento social é antes de tudo uma tecnologia de segurança e, assim sendo, contrainsurgência e desenvolvimento são uma só e mesma coisa. Acho que o Eduardo Tomazine [pesquisador da UFRJ que escreveu artigo sobre as UPPs], que rastreou o tópico, batizando-o de doutrina da pacificação, acrescentaria que a novidade na parte que nos cabe nessa guerra sem fim é que o inimigo foi internalizado. E isto não é pouca coisa, como se pode verificar quando o Manual de Garantia da Lei e da Ordem, baixado pelo Ministério da Defesa, tipificou como “forças oponentes” os manifestantes de junho. Poucos meses antes, os pacificadores cariocas de carteirinha jã haviam feito o mesmo amálgama na construção do novo inimigo. De minha parte, pude apenas observar que a ideia fixa da pacificação tem a mesma idade política da transição. Ajuda a compreender por que vivemos hoje uma “guerra ao contrário”, como eles mesmos diziam quando descobriram que o Rio descivilizava-se. Sei que a palavra insurgência é esdrúxula, a ponto de incluir os coxinhas entre os sublevados. Outra novidade do período. O golpe de 64 deslanchou una contrarrevolução onde não havia revolução. O Brasil-potência-emergente que voltou a associar desenvolvimento e segurança pode muito estar se instalando, sempre preventivamente, é claro, uma situação de perene contrainsurgência sem insurgência. Só por isso a palavra já interessava.

O senhor refuta a hipótese de fim da história, tão presente nos discursos triunfalistas da sociedade liberal de livre mercado. Mas também é um duro crítico de tudo que poderia ser englobado numa categoria “solidariedade”. O senhor acredita que os direitos humanos só podem ser pensados numa perspectiva liberal?

Dou um exemplo. Penso na repolitização do novo tempo jurídico que está fazendo ressurgir o passado no presente. Diante de um passado abominável de violações, o tempo já não cura mais, como se pensava e legislava quando o progresso visto de longe sorria, embora de perto sempre arreganhasse os dentes. Entramos não faz muito no domínio do imprescritível e do efeito retroativo autorizado. Mudou a relação do dano com o tempo. Sendo um imperativo do dever de memória, é possível dizer que a necessidade cada vez mais incontornável de um acerto de contas com o passado acabou fazendo com que a esquerda buscasse alcançar seus objetivos clássicos de justiça e emancipação por meio do foco na reparação dos horrores do passado. O presente prolongado de hoje é, assim, uma sociedade da responsabilização expandida até os confins do passado mais remoto. Essa nova temporalidade política se bifurca. Capturada no andar superior pelo progressismo governamentalizado, tornou-se o receptáculo de políticas públicas de administração de danos, sendo que a reparação é sempre urna intervenção que apenas restaura, para melhor corrigir uma disfunção, por mais que a elaboração final do trauma signifique uma libertação sem a qual ninguém vive. Chegamos, assim, à situação surreal de um Estado a um só tempo violador e reparador, que melhora seus indicadores de IDH enquanto segue chacinando, A menos que seja assim mesmo, numa sociedade que a ditadura mudou. Não estou censurando nada nem ninguém, apenas constatando mais uma reviravolta em nosso regime de esperas.

O senhor se refere à revisão dos processos de anistia?

Um jovem pesquisador lembrou recentemente que quem emplacou a ideia de anistia como esquecimento foi sobretudo a esquerda, que se preparava para retomar a luta progressista de antes contra uma ditadura ela mesma também modernizadora. Estávamos então no mesmo barco do antigo tempo do mundo. Sobreveio um tranco sistêmico e global que nos roubou o chão. E com ele o dever de memória foi aos poucos se convertendo num imperativo, hoje oficial. Mas onde corre um risco menor de se tornar oficial, no chão da fábrica social, a percepção característica do limiar no qual ingressamos, de que meio século depois as atrocidades que inauguraram o novo tempo brasileiro parecem ter acontecido horas atrás pode muito bem estar abrindo caminho para a antipolítica de que há pouco falávamos. A catástrofe que hoje reúne todos os dias vivos e mortos canalizou para o rio da memória ativa um horizonte de expectativas insatisfeitas que justamente não brotam mais de um arquivo morto, como se só pudéssemos avançar olhando para trás, sem ódio nem remorso.

O senhor considera mais produtivo pensar a critica ao capitalismo a partir da perspectiva de Max Weber do que da perspectiva de Karl Marx?

Luci Boltanski aparece apenas o suficiente para lançar uma luz retrospectiva sobre a visão luminosa de Walter Benjamin acerca da assombrosa religião que no fim das contas o capitalismo vem a ser: um sistema de comandos tão absurdos – tanto para os acumuladores de capital, seus supostos beneficiários, como seus provedores de força de trabalho, impossibilitados de viver fora da subordinação, ambos os extremos acorrentados a um processo sem fim e insaciável – que necessita de um “espírito” que o justifique, o que Weber foi buscar na ascese calvinista.

Não por acaso, numa não menos absurda religião do sofrimento. Observando no seu tempo a metamorfose fascista da ordem liberal, Benjamin notou que o tal espírito enxertado por Weber naquela máquina de moer gente simplesmente evaporara fazia tempo, deixando neste mundo duplamente desencantado uma engrenagem monstruosa puramente ritualística, e como tal, “religiosamente”, isto é, escrupulosamente observada. Se assim foi e voltou a ser, seria preciso corrigir Boltanski e constatar que o “novo espírito” do capitalismo, de espírito justificador não tem absolutamente nada, é pura letra. Como também o cumprimento preciso de uma ordem voltou a ser mais importante que o conteúdo das ordens – foi o que a socióloga Silvia Viana redescobriu, observando o comportamento dos voluntários sob contrato que povoam os “reality shows”, reinterpretados como empresas flexíveis funcionando ao vivo. Daí o estado de alerta permanente em que se vive nesse universo de vozes de comando que se cruzam e se confundem com o ato de obedecer.

Giorgio Agamben chegou à mesma conclusão analisando os dispositivos eletrônicos, aos quais na verdade obedecemos toda vez que lhes damos um comando. O importante é que a obediência assuma a forma de uma ordem que cada um dá livremente a si mesmo. O ritual da religião capitalista contemporânea se dá precisamente nestas Ordens que nos damos a nós mesmos. E se assim é, o novo tempo do mundo só pode ser um tempo ritual – por exemplo, o ritual securitário das emergências, no qual se reconfigura o poder por excelência de dar ordens e decidir sobre a exceção.

* Publicado originalmente no caderno “Eu & fim de semana” do jornal Valor Econômico, em 9 de abril de 2014.

LOUREIRO: Em busca do futuro perdido

samedi, décembre 27th, 2014

BEL_embuscadofuturoperdido

Em busca do futuro perdido: a tarefa
política da nova geração
Isabel Loureiro 1
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ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a
era da emergência. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014, 460 p.
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A sensação de que o mundo capitalista, o nosso mundo, se encontra
num fim de linha avançando em direção ao abismo tornou-se comum
não só no campo da esquerda intelectual mas na sociedade em geral.
O novo livro de Paulo Arantes – cujo título resume com precisão mais
um capítulo do seu esforço permanente de renovar a Teoria Crítica –
procura dar estatuto teórico à época de transição que atravessamos às
cegas, temendo nunca chegar sãos e salvos a porto seguro.
Antes de mais nada, uma observação preliminar. Estamos às
voltas com um livro exigente, à espera de leitores atentos, sem precon-
ceitos, dispostos a atiçar a imaginação. A tarefa do nosso Autor não
é fácil. Um mundo em transformação, para o qual não existem ainda
conceitos adequados, não pode ser apreendido nem traduzido numa
forma simplificada. Contra a linguagem reificada, unidimensional e
o consenso paralisante que torna quase indistinguíveis esquerda e
direita, a ironia corrosiva, por vezes o sarcasmo demolidor. O trabalho
do pensamento apresentado em toda a sua inteireza – uma das grandes
qualidades de Paulo Arantes, também em suas exposições orais – remete
à imagem do prisma que ao refratar a luz em várias direções compõe um
panorama intensamente matizado. A própria construção dos ensaios,
com o Autor dialogando consigo mesmo em longas digressões-excursos,
é testemunho disso. O trabalho do pensamento pulveriza categorias
petrificadas – o que já é uma forma de resistência contra a paralisia inte-
lectual da esquerda – e convida a pensar junto. Leitor voraz de memória
invejável, Paulo comenta livremente uma extensa bibliografia sobre as
questões candentes do presente, intercalando esses comentários com
reminiscências de romances, filmes, peças de teatro e assim por diante,
num domínio impressionante do seu material, a ponto de por vezes
provocar vertigem no leitor, curioso para ver aonde tudo isso vai dar.
Não há dúvida de que ideias para muitos projetos de pesquisa podem
ser tiradas daqui. É esse impulso generoso, buscando oferecer todos os
elementos disponíveis para que o leitor pense por si mesmo, inclusive
contra o próprio Autor, que torna essa meditação tão necessária num
momento em que grande parte da esquerda não consegue ultrapassar o
horizonte da próxima eleição.
Isto posto, encaremos a tarefa ingrata de resumir esse pensa-
mento fecundo e original, puxando o nosso fio da meada. Estes ensaios e
entrevistas – heterodoxamente filosóficos e materialistas – sobre a expe-
riência intelectual do tempo presente, ao descreverem sem nenhuma
benevolência as suas deformações, bem que poderiam ter como subtí-
tulo, parafraseando Freud ao contrário, o mal-estar na barbárie. Mas
afinal que mudanças aconteceram no mundo que permitem infligir tanto
sofrimento indevido a parcelas cada vez maiores da população mundial,
sem provocar nenhuma comoção visível? Que mutação histórica foi essa
que tornou plausível a comparação, extravagante à primeira vista, entre
o novo mundo do trabalho, vigente sob o neoliberalismo, e o trabalho
forçado do sistema concentracionário nazista? Por que considerar o
Brasil um capítulo local do estado de exceção permanente que assola o
planeta?
A resposta se encontra no primeiro ensaio, que dá título e armação
teórica ao livro, enquanto os outros expõem as figurações em que se
traduz concretamente o Novo Tempo do Mundo. Sem poder entrar nos
detalhes da reconstituição desse conceito, a ideia básica é que com a
falência do horizonte de expectativas inaugurado com a Revolução
Francesa – uma era de esperança em que se acreditava em mudanças
fundamentais no futuro, à qual sucedeu, após o fim da Segunda Guerra
Mundial, o consenso liberal-keynesiano – a humanidade, para falar como
Wallerstein, encalhou num “período negro” de “caos sistêmico”. Com o
fim da URSS e da Guerra Fria, começou-se a perceber que “o horizonte do
mundo encolhera vertiginosamente e uma era triunfante de expectativas
decrescentes principiara”, um “tempo intemporal da urgência perpétua:
este o Novo Tempo do Mundo” (p. 94). Em outros termos, o fim das
grandes expectativas tem a data da morte do Welfare, com a reintrodução
do medo econômico e da insegurança social em sociedades consideradas
como de excessivo bem-estar. Vivemos em sociedades de risco, à beira
do colapso ecológico, num permanente estado de alerta – não por acaso
o princípio da responsabilidade e o da precaução fazem parte do debate
–, indicando que o horizonte do mundo se estreitou. No resumo de Helga
Novotny: “A categoria temporal do futuro foi simplesmente suprimida e
substituída por uma outra, a do presente prolongado”. Ou nas palavras
do Autor: “Não basta anunciar que o futuro não é mais o mesmo, que ele
perdeu seu caráter de evidência progressista. Foi-se o horizonte do não
experimentado. Com isso o próprio campo de ação vai se encolhendo” (p.
96). Surge assim a grande questão: como “manter o horizonte de tal modo
descomprimido que o ‘não imaginado possa continuar imaginável’”? (p.
97) Ou seja, como fazer política, ou melhor, antipolítica, em oposição ao
fervor gestionário e policial aliado da lógica da valorização, que hoje faz
as vezes de política? Veremos que o último ensaio responde de algum
modo a essa questão, seis anos depois abriu-se uma fresta por onde sopra
um pequeno vento de utopia no presente prolongado.
Os três ensaios seguintes expõem as figuras contemporâneas do
Novo Tempo do Mundo. O primeiro deles, “Sale Boulot”, é um belís-
simo escrito sobre o Holocausto e o atual mundo do trabalho, a partir
do paralelo traçado pelo psicanalista francês Christophe Dejours entre
o neoliberalismo dos vencedores de 1989 e o sistema concentracionário
nazista. O aparato nazista de extermínio não teria funcionado sem a
colaboração eficiente de milhões de indivíduos comuns consentindo
em realizar zelosamente o seu trabalho sujo. De modo semelhante, o
“novo mundo do trabalho moldado pela racionalidade neoliberal domi-
nante”, tendo virado um “imenso campo de experimentação e difusão da
crueldade social”, produziu, tal como na Alemanha nazista, uma “livre
submissão defensiva” (p. 109). Foi o sofrimento social gerado no e pelo
trabalho no período neoliberal que levou Dejours à reinterpretação de
que o nazismo, como mobilização para o massacre, só se tornou possível
porque todo o povo alemão foi posto a trabalhar. “Só o trabalho tornou
possível organizar essa conduta de massa em proveito do horror (…).
Em nome do trabalho, sempre se poderá valorizar uma desgraça. Este
o segredo de toda ‘colaboração’” (p. 110). Exposta assim, sem media-
ções, pode parecer excessiva a comparação entre o trabalho genocida
dos nazistas e a atividade compulsória de indivíduos livres atados a um
ganha-pão, mas basta ler este ensaio formidável, que dá muito o que
pensar, para convencer-se de que a “Era dos Extremos de Hobsbawm foi
antes de tudo o Século do Trabalho Sujo” (p. 140).
É precisamente porque o horizonte do mundo encolheu – fruto
da desintegração da sociedade salarial sob o comando do capital – que
cresce a necessidade de manter imobilizadas as populações recalci-
trantes. Estas vegetam em “Zonas de Espera” (título do terceiro ensaio)
– presídios, campos de refugiados, agências de assistência social para
desempregados em busca de trabalho, Faixa de Gaza, Cisjordânia
ocupada, checkpoints espalhados pela Europa (mas não só) visando
a impedir a entrada de imigrantes ilegais e, acrescentemos por nossa
conta, ocupações de trabalhadores sem teto e sem terra – verdadeiras
zonas de “suspensão do tempo” onde punir, humilhar, infligir sofrimento
têm como objetivo a submissão necessária à administração “eficiente”
dessa “humanidade residual que estorva” (p. 186). No turbocapitalismo
da aceleração absoluta abriu-se um fosso entre o núcleo endinheirado
correndo infatigavelmente para acumular capital e os párias sub-hu-
manos com tempo de sobra para esperar “por coisa nenhuma” (p. 152).
Aqui novamente o tempo é matéria para reflexão – tempo acelerado
das elites versus espera imobilizadora dos pobres, a base material do
conjunto sendo dada pela falência da sociedade do trabalho. Todas essas
descrições do sofrimento inútil mundo afora conduzem a imaginação
de volta à “quarentena infinita” (p. 188) dos campos de concentração
nazistas. Diante dessa espera sem horizonte, que “corrompe sem
fermentar” (p. 187) – a Questão Palestina não nos deixa mentir – talvez
seja preciso concordar com o veredicto de que o “prazo de validade do
teorema marxista – a humanidade só se defronta com os problemas que
pode resolver – esteja vencido” (p. 82).
A falência da sociedade salarial, que no período fordista-keyne-
siano proporcionava alguma forma de coesão social, levou ao sequestro
do futuro para as novas gerações, produzindo violência crescente dos
dois lados: por parte do Estado, com toda a força de que dispõe – poli-
cial, legal e extra-legal – visando a garantir a segurança do capital, e
por parte das periferias que protestam contra a injustiça em que vivem
encurraladas. Esse estado de “emergência perene” (p. 225) é objeto da
análise do quarto ensaio, “Alarme de incêndio no gueto francês”, focado
nos tumultos das periferias francesas em 2005, vistos como resultado do
“longo processo de erosão dos direitos fundamentais” desde a década de
1980, que acabou por ganhar novo ímpeto com o 11 de setembro de 2001.
Não nos enganemos, o caso francês é emblemático do que se passa no
resto do mundo. O cinismo das “elites delinquenciais de hoje” (p. 244),
que não acreditam mais em sua própria legitimidade e, por isso mesmo,
ameaçam as populações recalcitrantes com a permanente emergência
econômica, é um sinal da exaustão do capitalismo histórico, cuja fase
atual – embora se refira à França, para bom entendedor meia palavra
basta – Paulo Arantes caracteriza sarcasticamente como “ciclo de capi-
talismo de compadres” (p. 232) ou, mais debochadamente, “capitalismo
de conivência entre cupinchas” (p. 211). Este o enquadramento em que a
exacerbação do sentimento de insegurança se torna vital para a gestão,
por parte do Estado, da “Era da Emergência”.
O restante do livro tem o Brasil como tema. Mas há uma mudança
de tom entre as partes 3 e 4 (escritas entre 2007 e 2011) e o ensaio
final, sobre os eventos de junho de 2013. Antes de 2013, o ano que não
se encerrou, o sentimento era o de uma sociedade presa à maldição de
uma conjuntura que não passa, a um horizonte de expectativa nulo sob
a hegemonia cultural da direita. Embora os melhoramentos obtidos por
milhões de trabalhadores pobres no Brasil não sejam de modo algum
subestimados por nosso Autor, o que o incomoda é o outro lado da moeda,
o “capitalismo brasileiro de cupinchas” (p. 312). Embora o Brasil de hoje
seja muito diferente daquele de 1964 (para não falar do Brasil colônia),
vivia-se então e vive-se agora no que talvez se possa caracterizar
como “Estado Oligárquico de Direito” ou Estado “dual”, que trata com
liberalidade as “classes confortáveis” enquanto à ralé dispensa um trata-
mento “paternalista-punitivo”. Análises comentadas por Paulo Arantes
mostram como “Do Banco Central ao Código Tributário, passando pela
Reforma Administrativa de 1967, a Constituição de 1988 incorporou todo
o aparelho estatal estruturado sob a Ditadura. (…) Vem da Ditadura a
consagração da lógica empresarial como prática administrativa do setor
público” (p. 298). Ou seja, o país está atolado numa Transição que não
passa.
Do lado macroeconômico, estilizando muito, na divisão inter-
nacional do trabalho de acumulação, coube ao Brasil, mais uma vez,
atualizar a conhecida fórmula dialética do desigual e combinado, mas
sem que daí saia qualquer impulso de superação. O desenvolvimento
brasileiro juntou duas pontas aparentemente opostas: o país se converteu
numa plataforma de valorização financeira e, ao mesmo tempo, aderiu ao
“consenso das commodities”. Nesse cenário, a ideia de segurança torna-
se fundamental. Tudo o que ameaça o desenvolvimento, entendido no
sentido material, tem que ser afastado. Das populações no caminho dos
megaeventos, passando pelos indígenas que se opõem às mega-represas,
até os coletivos urbanos do contra, todos devem ser removidos da rota do
progresso. Quer por bem, assimilando-os mediante os programas assis-
tenciais de combate à pobreza e, no caso dos jovens, anulando-os com a
conversa fiada do protagonismo juvenil. Quer por mal, quando teimam
em ocupar as ruas, suprimindo-os com a conhecida coreografia da tropa
de choque e das detenções em massa.
Com isso chegamos ao último ensaio do livro. “Depois de junho
a paz será total” é o título irônico do tour de force que encerra a nossa
viagem e que procura dar conta do vínculo entre pacificação e insur-
gência. Passado um ano, continuamos a dar tratos à bola para entender
o que foi o “maior protesto de massa da história brasileira, com esta
peculiaridade igualmente divisora de águas, a de que ele foi rigorosa-
mente autoconvocado” (p. 378). Pulverizando os clichês propagados à
direita e à esquerda – “baderna” de rua protagonizada por vândalos a
serem devidamente dedetizados pelas forças da ordem, ou esquerdismo
infantil de uma juventude desorganizada, sem direção, e que portanto
dará em nada –, Paulo Arantes vai rastreando, na literatura recente
sobre as classes populares urbanas no Brasil e em publicações de prota-
gonistas dos eventos, ideias que lhe permitam construir hipóteses sobre
a genealogia dos acontecimentos de junho. Dessa maneira, leva a cabo a
interpretação mais original desses eventos até agora.
Se pusermos na panela de pressão brasileira os seguintes ingre-
dientes, quase todos indigestos: o Programa de Pacificação das Favelas
no Rio de Janeiro com suas UPPs, na verdade uma estratégia de guerra;
a violência policial contra os moradores das periferias urbanas; as remo-
ções forçadas exigidas pelos megaeventos; as políticas públicas que, ao
incitar o empreendedorismo dos pobres, se, por um lado, canalizam sua
energia para uma atividade governável, por outro, criam um sedimento
reivindicativo à espreita para explodir; as lutas pela cidade, levadas a
cabo por uma geração de “cidadãos insurgentes” exigindo a democra-
tização do solo urbano; a “agonia do trabalho descartável, mostrando
que o capitalismo como religião em sua forma contemporânea tornou-se
um espantoso e interminável ‘ritual de sofrimento’” (p. 396); as revoltas
populares pelo transporte público; a síndrome da participação cidadã
sem poder, etc. – todos temas analisados pelo Autor –, desconfiamos que
esse conjunto de fenômenos faz sistema e explica, quem sabe, a “nova
insurgência profanatória” (p. 413) que explodiu nas ruas em junho de
2013.
Não é possível retomar aqui passo a passo a exposição até chegar
à atuação do Movimento Passe Livre (MPL), responsável pelo desenca-
deamento daqueles eventos memoráveis. Basta dizer que o movimento
foi vitorioso graças a sua lucidez tática e estratégica – em forte contraste
com a inabilidade política do prefeito e do governador. Os jovens (insur-
gentes?) do MPL souberam aliar o foco “reformista” numa única
demanda, a redução de 20 centavos na tarifa, com uma exigência anti-
capitalista de desmercantilização da vida, a tarifa zero. Assim sendo,
apresentaram um novo modelo – ainda que seja uma “herança sem
receita” (p. 428) – para as lutas sociais no Brasil, ao mesmo tempo em
que afrontaram a esquerda oficial, entorpecida pela realpolitik.
Paulo Arantes – assim como há exatos 50 anos o Marcuse de O
homem unidimensional – é visto frequentemente como adepto da crítica
pela crítica; tal como Mefistófeles, o espírito que sempre nega, teria ficado
preso ao pessimismo de uma sociedade sem oposição; ao não apresentar
alternativas, só levaria à paralisia, etc. O leitor atento verá que, muito
pelo contrário, a crítica radical não se esgota nela mesma, mas cria o
sentimento da urgência necessário à luta.
No mundo da racionalidade neoliberal – em que a lógica do
mercado se autonomiza e se estende para fora da esfera mercantil, estru-
turando a ação dos governantes, assim como a dos próprios governados
no mais íntimo da sua subjetividade – a ideia de negação da negação
ficou obsoleta, Marcuse dixit, para escândalo dos marxistas ortodoxos
que teimam em não perceber que o realejo da dialética já não garante a
superação imanente das contradições atuais numa etapa superior. Paulo
Arantes concorda. De onde viria a ruptura com o sistema absurdo da
acumulação pela acumulação quando as tecnologias de controle social,
tudo leva a crer, produziram um “indivíduo absolutamente governável”
e isso com sua própria e resoluta colaboração? Como romper com a
pretensa normalidade governamental que reduz a política a uma pers-
pectiva contábil?
O que os insurgentes de junho nos ensinam, nas palavras de
John Holloway citadas pelo Autor, é que “Não faz mais sentido falar em
paciência [grifo meu, nem mesmo do Conceito, P. A.] como uma virtude
revolucionária ou falar sobre ‘revolução futura’. Que futuro? Precisamos
da revolução agora, aqui e agora. Tão absurdo, tão necessário. Tão óbvio”
(p. 415). Hoje, a “utopia real” consiste na Grande Recusa desse sistema
de normas, valores, práticas que mercantilizam todas as dimensões da
vida, infligindo sofrimento e humilhação aos de baixo, e ao mesmo tempo
temor de arriscar a ruptura com o eterno retorno do mesmo. Encarar
esse estado de coisas e dar um passo adiante é a tarefa da nova geração.
Que abriu uma porta em junho de 2013.
Um vento de utopia sopra em várias passagens do livro, mas vou
me ater ao trecho final, quando Paulo comenta um texto da socióloga
Regina Magalhães de Souza em que ela resume sua experiência de
professora de sociologia numa dessas universidades particulares que
vendem diplomas como se fossem bananas. A maioria dos alunos, traba-
lhadores pobres habitantes das periferias, vão descobrindo aos poucos
que, em vez de serem apenas indivíduos atomizados lutando às cotove-
ladas por seus interesses próprios, fazem parte de uma coisa chamada
“sociedade”, que esta “lhes exige muito, mas não lhes oferece as condi-
ções de realizarem o que foi exigido”. Ou seja, começaram a pensar e a
fazer ligações entre suas experiências individuais e o contexto histórico
e social. O que só foi possível porque, de alguma maneira, estavam fora
da rede de integração pelo consumo, pelos movimentos sociais, partidos,
sindicatos, protagonismo juvenil. A professora reconheceu muitos deles
nas ruas de junho. Isso lhe dá o insight de que “a massa dos manifes-
tantes era de indivíduos desamparados e sem discurso, mas que por isso
mesmo foram capazes de perceber o caráter subalterno e de segunda
categoria de sua inserção na sociedade, no mercado de trabalho, no
mercado de consumo, no nível superior de ensino, na vida da metrópole
[…]. [Eles] descobriram que coletivamente podem manifestar-se contra
uma sociedade que tudo exige e nada cumpre” (p. 456). Para usarmos os
termos de Silvia Viana, eles começaram a recusar as “porradas da vida”,
e por isso são imprescindíveis para a tarefa política da nova geração.
Paulo Arantes dedica seu livro “ao sangue bom que há treze anos
circula nas noites de quarta” – os jovens estudantes que há mais de uma
década frequentam o seminário livre animado por ele na Faculdade de
Filosofia da USP. Ali fervilham ideias sobre as “coisas novas e ruins”
do tempo presente, o Brasil em primeiro lugar. Incorporadas por ele à
sua reflexão, essas ideias do contra, ao insuflar novo alento nas ener-
gias utópicas eclipsadas há muito, ajudam a manter viva a chama da
redenção.

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DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i59p389-396

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1     Professora aposentada do Departamento de Filosofia da Universida-
de Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp, Marília, SP, Brasil).
E-mail: belloureiro@uol.com.br

Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 59, p. 389-396, dez. 2014
Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 59, p. 389-396, dez. 2014