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JAPPE: Viagem ao coração das trevas do capitalismo

dimanche, mai 14th, 2017

“Viagem ao coração das trevas” do capitalismo*

ANSELM JAPPE **

em pdf: Viagem ao coração das trevas do capitalismo – A. Jappe
Robert Kurz, o teórico principal da “crítica do valor”, morreu em 18 de julho
de 2012 em Nuremberg (Alemanha), como consequência de um erro médico. Ele
tinha 68 anos. Essa morte prematura interrompe um trabalho imenso conduzido
há 25 anos, do qual o público francês apenas começou a ter consciência. Nascido
em 1943 em Nuremberg, onde passou toda a vida, Kurz participa da “revolta dos
estudantes” em 1968 na Alemanha e das intensas discussões no interior da “Nova
esquerda”. Depois de ter recusado o marxismo-leninismo, sem aderir aos “Verdes”,
que nesse momento passavam pela muda1 “realista” na Alemanha, funda em 1987 a
revista Marxistische Kritik, rebatizada como Krisis depois de alguns anos. A releitura
de Marx proposta por Kurz e por seus primeiros companheiros de luta (entre
os quais Roswitha Scholz, Peter Klein, Ernst Lohoff e Norbert Trenkle) não lhes
trouxe só amigos na esquerda radical. Esta última via seus dogmas serem transtornados
um após o outro, tais como a “luta de classes” e o “trabalho”, em nome
de um questionamento dos fundamentos da sociedade capitalista: valor mercantil
e trabalho abstrato, dinheiro e mercadoria, Estado e nação. Kurz, autor prolífico e
dotado de uma pluma bela e vigorosa, amiúde polêmica, atingiu um público mais
vasto com seu livro O colapso da modernização (1991), que afirmava, no exato
momento do “triunfo ocidental” consecutivo ao fim da URSS, que os dias da
sociedade mercantil mundial estavam contados e que o fim do “socialismo real”
* [N.T.] Este texto foi elaborado para o público francês. Tradução de: Robson J. F. de Oliveira.
** Professor da Academia de Belas Artes de Frosinone. E-mail: a.jappe@accademiabellearti.fr.it
1 Muda se refere ao processo de mudança de penugem pelo qual os pássaros passam.
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apenas representava uma etapa nesse processo. Articulista regular em jornais importantes,
notadamente no Brasil, conferencista notável, Kurz, mesmo assim, preferiu
ficar fora das universidades e das outras instituições do saber, conseguindo viver
graças a um trabalho proletário. Os cerca de doze livros e as centenas de artigos
que publicou se situam, grosso modo, em dois níveis: de um lado, uma elaboração
teórica de fundo, conduzida por meio de longos ensaios publicados na Krisis e na
Exit! (fundada em 2004 depois da cisão com a Krisis). De outro, um comentário
contínuo acerca do aprofundamento da crise do capitalismo e uma investigação
de seu passado – especialmente através de uma grande história do capitalismo,
O livro negro do capitalismo (1999), que foi, mesmo com suas 850 páginas, um
best-seller na Alemanha; mas também de A guerra do reordenamento mundial
(2003), O capital-mundo (2005) e de seus artigos na imprensa.
Vies et mort du capitalisme [Vidas e morte do capitalismo] reúne cerca de
trinta artigos e entrevistas centrados mais na análise da atualidade. Esse volume
é um prolongamento da coletânea de artigos lançados na França, Avis aux
Naufragés [Alerta aos náufragos] (2005). Os novos textos são datados de 2007
a 2010 e cobrem principalmente o período marcado pela crise do capitalismo que
estourou em 2008, geralmente considerada como a mais grave desde 1929. Com
efeito, sua crítica do valor é principalmente conhecida pela afirmação de que o
capitalismo está mergulhado numa crise irreversível – Kurz até foi qualificado,
em certos meios de comunicação, como “profeta do apocalipse”. Há vinte anos,
até mesmo no período de aparente vitória definitiva do capitalismo, nos anos
1990, Kurz sustenta, apoiado numa leitura rigorosa de Marx, que as categorias
de base do modo de produção capitalista estão se esgotando e atingiram seu “limite
histórico”: já não se produz “valor” o bastante. Ora, o valor (que contém o
mais-valor, logo, o lucro), expresso em dinheiro, é o único objetivo da produção
capitalista – a produção de “valores de uso” não passa de um aspecto secundário.
O valor de uma mercadoria é dado pela quantidade do “trabalho abstrato” que foi
necessário para sua fabricação, ou seja, trabalho como puro dispêndio de energia
humana, sem consideração de seu conteúdo. Quanto menos uma mercadoria contém
trabalho, menos ela tem “valor” (e é preciso que esse trabalho corresponda ao
nível de produtividade estabelecido num dado momento: dez horas de trabalho de
um tecelão artesanal podem “valer” somente uma hora, a partir do momento em
que, com uma máquina, o tecelão produz em uma hora o que antes fazia em dez
horas, logo que o regime de produção se torna industrial). Desde seus primórdios,
o capitalismo vive essa contradição: a concorrência impele cada capitalista a substituir
o trabalho vivo por máquinas, obtendo, assim, uma vantagem imediata no
mercado (ele obtém preços mais baixos). Procedendo assim, é a massa de valor
como um todo que diminui, enquanto os custos com tecnologias – que não criam
valor – aumentam. Consequentemente, a produção de valor corre a todo instante
o risco de se estrangular por conta própria e de perecer por falta de rentabilidade.
O lucro – a face visível do valor, aquela que interessa aos agentes do processo
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mercantil – só é possível se o regime de acumulação funcionar. Durante muito
tempo, a expansão interna e externa da produção de mercadorias (rumo a outras
regiões do mundo e no interior das sociedades capitalistas) pôde compensar o
valor diminuto das mercadorias singulares. Mas a partir dos anos 1970, a “terceira
revolução industrial”, a da microeletrônica, tornou o trabalho “supérfluo” em tais
proporções, que nenhum mecanismo de compensação foi mais suficiente. Desde
então, o sistema mercantil sobrevive essencialmente graças ao “capital fictício”: é
o dinheiro que não é o resultado de uma criação de valor obtida através do emprego
produtivo da força de trabalho, mas que é criado pela especulação e o crédito,
e cuja única base são os lucros futuros ainda por realizar (mas em proporções
gigantescas, portanto, impossíveis de realizar).
Segundo Kurz, essa teoria da crise inelutável está presente em Marx (mas
de uma maneira fragmentada e ambígua, o “Fragmento sobre as máquinas” nos
Grundrisse é a passagem mais significativa): a acumulação de capital não é um
modo estável que poderia continuar até o infinito e à qual somente a “luta dos
oprimidos” colocará um fim, como proclamou todo o marxismo depois de Marx.
Kurz demonstra que a “teoria do colapso”, longe de ser o objeto de um amplo
consenso entre os marxistas, como amiúde se afirma, apresentava-se muito mais
como uma “serpente marinha”. Alguns teóricos se acusavam mutuamente de se
apoiar nessa teoria do colapso, mas quase ninguém admitia que o capitalismo
pudesse se chocar contra seus limites internos antes mesmo de uma revolução
proletária. As únicas teorias que analisavam esses limites, as de Rosa Luxemburgo
(A acumulação do capital, 1912) e Henryk Grossmann (A lei da acumulação
e o colapso do sistema capitalista, 1929), ficaram, segundo Kurz, no meio do
caminho e não exerceram nenhuma influência real no movimento operário. Kurz
apresenta, assim, sua própria teoria da crise como uma novidade absoluta – que
se tornou possível pelo fato de o limite interno da produção de valor, previsto
num plano teórico por Marx, ter sido realmente atingido nos anos 1970. Desde
há alguns anos, essa crise veio à luz, depois de, durante muito tempo, ter sido
negada até mesmo pela esquerda. Mas, para Kurz, as explicações dadas atualmente
pelos “economistas de esquerda” (em verdade, simples neokeynesianos), que a
relacionam com o “subconsumo”, são demasiado insuficientes. Não há mais solução
possível dentro dos marcos da sociedade mercantil, que não cabe mais na
camisa de força do valor, a partir do momento em que as tecnologias substituíram
quase inteiramente o trabalho humano. Quando cada mercadoria só contém doses
“homeopáticas” de valor – portanto, de mais-valor, logo, de lucro –, nada muda
no que diz respeito à sua utilidade (eventual) para a vida. Mas, para o modo de
produção fundado no valor, essa situação é mortal; e numa sociedade inteiramente
submetida à economia, essa queda traz o risco de levar toda a sociedade à barbárie.
Kurz não se limita a essas generalidades, ele analisa em detalhes a evolução
da crise. Lendo as estatísticas oficiais na contracorrente, ele prova, entre outras
coisas, que a China não salvará o capitalismo; que a retomada da economia alemã
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está baseada, como todo o resto, em novas dívidas; que depois da crise de 2008
o que se fez foi apenas deslocar os “créditos podres” do setor privado para os
Estados; e que os serviços são geralmente trabalho “improdutivo” (no sentido de
que não produzem valor) e não podem substituir os postos de trabalho perdidos
na indústria etc. Ele demonstra por que nem os “programas de aquecimento da
economia” neokeynesianos, nem os mosteiros de austeridade podem ter chance de
resolver a crise, e menos do que nunca as propostas para “criação de empregos”: o
problema de fundo – que também é a razão para se ter esperança! – está exatamente
constituído pelo “fim do trabalho”. Trabalho e valor, mercadoria e dinheiro não são
dados eternos da vida humana, mas invenções históricas relativamente recentes.
Atualmente vivemos o seu fim – que não acontecerá num dia, evidentemente, mas
no espaço de algumas décadas, como Kurz precisa, ao se distinguir um pouco de
suas previsões anteriores mais “catastrofistas” a curto prazo.
A financeirização da economia e a especulação, longe de constituírem as causas
da crise, contribuíram durante muito tempo para “empurrá-la com a barriga”, e
continuam a desempenhar esse papel. Mas, assim, vamos acumulando um potencial
de crise ainda maior – e para começar, a explosão de uma inflação mundial
gigantesca, signo de uma desvalorização do dinheiro enquanto tal. Jogar a culpa
nas costas dos “banqueiros” ou localizar as causas numa espécie de conspiração
neoliberal, como fazem quase todas as críticas de esquerda, significa, segundo
Kurz, passar ao largo do problema. Eis a razão por que Kurz se mostrou, antes
de tudo, cético em relação ao potencial emancipatório dos novos movimentos de
protesto, dos quais ele estigmatiza as derivas antissemitas abertas ou implícitas.
Ele acusa com frequência a esquerda – em todas as suas variantes – de não querer,
de fato, sair do quadro capitalista, considerado por ela como eterno. Por isso, ela
propõe somente uma distribuição um pouco mais “justa” do valor e do dinheiro,
sem levar em conta o papel negativo e destrutivo dessas categorias, nem seu esgotamento
histórico. Pior ainda, os diferentes representantes da esquerda acabam
frequentemente por se propor a coadministrar o deslizamento rumo à barbárie e
à miséria. Em vez de correr atrás dos movimentos de contestação e de adulá-los,
Kurz lhes opõe constantemente a necessidade de retomar uma crítica anticapitalista
radical (em seus conteúdos, e não somente nas formas!); essa crítica deve ajudá-los
a se desvencilharem das suas insuficiências. Não basta mudar os funcionários da
administração: o capitalismo é um sistema fetichista inconsciente, regido por um
“sujeito autômato” (a expressão é de Marx) da valorização do valor. A dominação
pessoal dos proprietários jurídicos dos meios de produção sobre os vendedores
de força de trabalho não passa da tradução “sociológica”, visível na superfície,
do mecanismo autorreferencial de acúmulo do capital.
Em Dinheiro sem valor, Kurz lança mão de uma artilharia pesada da crítica
da economia política num plano essencialmente conceitual. Mesmo tendo saído
poucos dias depois da morte de seu autor, esse livro não representa nem um sumário
nem um testamento teórico, sendo concebido como a primeira parte de um vasto
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projeto de refundação da crítica da economia política. Nessa obra, Kurz trata de
quatro grandes temas ligados entre si: a diferença fundamental entre as sociedades
pré-capitalistas, protocapitalistas e capitalistas, e o papel do dinheiro no interior
delas; o nascimento do capital e do valor mercantil a partir do século XV; a lógica
interna do capital quando plenamente desenvolvido; a contradição interna e o limite
interno lógico da acumulação capitalista no decurso de sua evolução histórica até
o presente. Sempre procedendo por meio de uma polêmica cerrada com marxistas
alemães, bem pouco conhecidos na França (M. Heinrich, H.-G. Backhaus, E. Altvater,
W. F. Haug), e passando por demonstrações bastante sutis (e talvez até meio
misteriosas para os não iniciados), Kurz chega a resultados surpreendentes em sua
simplicidade. Ele não se vale de quase nenhum autor da tradição marxista, mas
somente do próprio Marx (apenas Adorno e o Lukács da História e consciência de
classe parecem lhe servir de inspiração parcial, e muito mais no que diz respeito
à abordagem dialética). Kurz não tem a pretensão de “restabelecer o que Marx
realmente disse” e apresentar-se como o único intérprete. Busca, em verdade,
desenvolver e aprofundar o lado mais radical e inovador do pensamento de Marx.
Uma parte de sua obra – o “Marx exotérico” – ficou, segundo Kurz, no terreno da
filosofia burguesa dos Iluministas e da sua crença no “progresso” e nos benefícios
do trabalho. É na outra parte – que permaneceu minoritária e fragmentada – que
o Marx “esotérico” levou a cabo uma verdadeira revolução teórica, que quase
ninguém durante mais de um século soube compreender nem continuar. Esses
diferentes aspectos da teoria de Marx estão estreitamente entrelaçados (não se trata
em absoluto de “fases” sucessivas!). O núcleo mais profundo, alicerçado na teoria
do valor, não se tornou verdadeiramente atual senão com o declínio do capitalismo.
Kurz não se propõe, portanto, a “interpretar” Marx, nem a “corrigi-lo”, mas a
retomar suas intuições mais fecundas, mesmo opondo-as a outras ideias do mestre.
Comparado a seus livros precedentes, Kurz aprofunda aqui dois temas que
antes haviam ficado um tanto implícitos. Ele afirma que aquilo que chamamos
de “valor” e “dinheiro” não existiu antes do século XIV ou XV, e que os fenômenos
que nos parecem ser o dinheiro ou o valor nas sociedades pré-capitalistas na
verdade exerciam nelas uma função fundamentalmente diferente. O capitalismo
não nasceu como uma excrescência particular numa existência atemporal – ou, de
todo modo, muito antiga – do valor e do dinheiro, mas ao mesmo tempo que estes.
Kurz faz apenas breves excursões na história “factual”, mas examina em detalhe
a estrutura das “categorias” da crítica da economia política. Para esse objetivo, é
necessário centrar fogo no “individualismo metodológico” (que ele identifica ao
“positivismo”), considerado por ele como o fundamento de todo o pensamento
burguês e que teria igualmente “infectado” quase todo o marxismo. Estaria presente
até no pensamento do próprio Marx, lado a lado com sua inspiração mais
autenticamente dialética, o que explica as cont radições no interior de sua obra.
Insistindo na diferença entre essência e fenômeno, o ser e o parecer, as categorias
escondidas e os fatos visíveis, Kurz se situa – sem dizê-lo explicitamente – no
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campo da dialética hegeliana e da diferença entre razão e intelecto. Kurz nunca
tinha se expressado de forma tão cristalina acerca de seus fundamentos metodológicos.
Não se trata, entretanto, de recomeçar, como nos anos 1970, a gargarejar a
palavra “dialética” e fazer dela um método universal. Kurz sempre tira sua energia
da polêmica contra um adversário: aqui, a incapacidade do pensamento burguês
de ir além dos fatos isolados e de seus eventuais “efeitos recíprocos”. O “todo”
não é simplesmente a soma dos elementos particulares, ele possui uma qualidade
própria; os elementos particulares não são o que parecem ser num simples golpe
de vista, como na visão empírica. Eles não revelam sua verdadeira natureza, senão
ao serem entendidos como determinados pelo todo. Todavia, Kurz não se entrega
a considerações metodológicas preliminares de maneira abstrata, mas elabora sua
abordagem, desenvolvendo seu raciocínio acerca de um objeto dado: não se trata
de analisar (como amiúde o faz o próprio Marx, pelo menos no primeiro volume de
O capital) a estrutura de um capital particular – nem mesmo de um capital “tipo
ideal” –, para em seguida conceber o “capital total”, que nada mais faria do que
reproduzir a estrutura do capital particular, como a agregação desses capitais
particulares. Da mesma forma, a mercadoria particular só é analisável como parte
da massa total de mercadorias.
Kurz começa seu livro discutindo um problema que aparentemente está ligado
mais à filologia marxiana. No primeiro capítulo de O capital, Marx analisa a
mercadoria e seu valor de uma maneira puramente lógica. A mesma cadeia lógica
conduz em seguida à existência do dinheiro; e são necessários ainda alguns passos
suplementares para se chegar ao capital. Essa sucessão lógica é também o reflexo
de uma sucessão histórica? Marx não é claro acerca disso e parece hesitar. Em
contrapartida, para o velho Engels e para os marxistas posteriores já é coisa certa:
a lógica corresponde à história. É a abordagem “lógico-histórica”. Para eles,
o valor mercantil existia muito antes do capital. Durante milhares de anos teria
havido uma “produção de mercadorias simples”, sem capital. Desde sempre, ou
quase, os homens atribuíram um “valor” a seus produtos, baseados no trabalho
que despenderam para fabricá-los. O dinheiro também teria existido há muito
tempo, mas servia apenas para facilitar as trocas. O capitalismo só teria vindo
depois que o dinheiro se acumulou até o ponto de tornar-se capital e de encontrar
diante de si uma força de trabalho “livre”.
Essa abordagem, protesta Kurz, “naturaliza” ou “ontologiza” o valor e o
trabalho, transformando-os em condições eternas de toda a vida em sociedade.
Mesmo a sociedade pós-capitalista fica reduzida a uma espécie de “aplicação
consciente da lei do valor” (esse oxímoro era um dos objetivos declarados do
“socialismo real”!) ou a formas de “mercado sem capitalismo exagerado”. Vê-se
que a leitura de Marx que Kurz propõe, por mais teórica e afastada da “práxis” que
possa parecer à primeira vista, pode implicar consequências bastante “práticas”.
Kurz retoma, às vezes corrigindo-a, “a nova leitura de Marx” proposta na
Alemanha desde 1968 por certos alunos de Adorno (H.-G. Backhaus, H. Reichelt):
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em sua análise da forma-valor, Marx examinaria as categorias mercadoria, trabalho
abstrato, valor e dinheiro como se apresentam num regime capitalista desenvolvido
“que anda com as próprias pernas”. Tratar-se-ia de uma reconstrução conceitual
que começa com o elemento mais simples, a “forma-mercadoria simples”, para
chegar à gênese “lógica” do dinheiro; a existência do capital, que aparece nessa
dedução como consequência, é na verdade já um pressuposto da análise da forma
mais simples. O valor enquanto quantidade de trabalho abstrato só existe onde
o dinheiro e o capital existem. As etapas intermediárias da construção marxiana,
como a “forma-valor desenvolvida” onde a troca das mercadorias acontece sem
a mediação do dinheiro-mercadoria, são simples etapas da demonstração – elas
não correspondem a nada de real. Sem a existência de um dinheiro-mercadoria
(os metais preciosos), os valores não podem se relacionar entre si como valores.
Portanto, uma produção de mercadorias sem dinheiro não pode existir, e a teoria
marxiana da forma-valor só pode ser válida para o capitalismo. O estatuto pouco
claro da análise da forma-valor no próprio Marx corresponde tanto a dificuldades
de exposição (os pressupostos são ao mesmo tempo as consequências, e vice-versa)
quanto à oscilação de Marx entre histórico e lógico, entre dialética e empirismo.
Logo: nada de valor sem dinheiro, nada de dinheiro sem capital. Mas replicarão
de pronto, o comércio, mercados e o dinheiro – e até mesmo a moeda
cunhada – existem há milênios; podem-se encontrar formas primitivas até na
Idade da Pedra. Para a interpretação histórico-lógica tradicional, que vê na análise
marxiana um resumo da evolução histórica real, isso não constitui um problema:
o valor sempre existiu, garante ela, da mesma maneira que o dinheiro a partir de
certa época – mas como “nichos”, ou seja, somente para a troca de excedentes.
Era, no que diz respeito à sua estrutura, o mesmo dinheiro e o mesmo valor de
hoje. O crescimento gradual dessas trocas, principalmente ao final da Idade Média,
levou à formação do capital. Kurz reprova o marxismo quando pensa assim,
quando não se distingue da ciência burguesa em sua abordagem positivista que
só considera fatos isolados: ao ver uma pessoa que dá um saco de trigo em troca
de uma pepita de ouro no antigo Egito, na Idade Média e hoje, ela conclui que
em todos esse casos se trata da mesma coisa: mercadoria por dinheiro, portanto,
comércio, logo, mercado…
Para Kurz, os fatos empíricos não demonstram nada sem uma “crítica categorial”
que as situe em seu contexto. Assim, sem definirmos o que é o dinheiro
no modo de produção capitalista (não somente suas funções práticas, mas o que
ele é), não podemos decidir se as conchas ou as peças de ouro que circulavam nas
sociedades não capitalistas correspondiam ao dinheiro no sentido moderno. É o
que Kurz nega resoluto. Historicamente, o dinheiro precede o valor, diz ele. Mas
qual dinheiro? O dinheiro no sentido capitalista nasce, diz Kurz, com a difusão
das armas de fogo, a partir do fim do século XIV. O que nos parece dinheiro nas
sociedades pré e não capitalistas tinha mais uma função sacral: nascido do sacrifício,
o dom fazia os produtos circularem no quadro de uma rede de obrigações,
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onde as pessoas investidas de um poder sacral desempenhavam um papel central.
Era uma outra forma de fetichismo. Havia evidentemente produção e circulação
de bens, mas não “economia”, “trabalho” ou “mercado”, nem mesmo em formas
rudimentares ou “ainda não desenvolvidas” (como Kurz afirma, em oposição a
Karl Polanyi, com quem ele concorda em outros aspectos). Kurz só rapidamente
entra numa análise histórica do papel do dinheiro (reservada para trabalhos futuros
que, infelizmente, não mais serão publicados) e só cita poucos autores. Entre eles,
o medievalista Jacques Le Goff, que nega a existência de um “dinheiro” na Idade
Média (e que Kurz opõe a Fernand Braudel para quem “o mercado é universal”).
O dinheiro pré-moderno não tinha “valor”: a fonte de sua importância não estava
no fato de ser a representação quantitativamente determinada de uma “substância”
social geral como é o trabalho nas sociedades modernas.
O capitalismo não constitui, aos olhos de Kurz, uma intensificação das formas
sociais antecedentes, mas uma violenta ruptura. A enorme sede de dinheiro suscitada
pela corrida aos armamentos a partir do século XV representa o big bang
da modernidade, gerando, no decurso de algumas gerações, um sistema baseado
no dinheiro (que muda totalmente de função: de símbolo, numa relação pessoal
de obrigações, ele se torna princípio de mediação social universal no posto de
representante material do trabalho abstrato), o valor-trabalho, o próprio trabalho
abstrato, o capital e, claro, o Estado (que também muda de função).
Poder-se-ia dizer que Kurz começou aqui uma grande obra, na qual quase tudo
ainda está por se fazer. É claro que sua abordagem possibilitará trocas com aqueles
que estudam o “dom” na linha de um Marcel Mauss (que, como Michel Foucault, é
objeto de algumas observações bastante interessantes, mas muito rápidas). A recusa
do “individualismo metodológico” produz seus frutos também na releitura kurziana
de Marx e na crítica da adaptação do marxismo aos critérios da economia política
burguesa (marginalista e neoliberal). Segundo Kurz, numerosas dificuldades na
teoria de Marx (como o famoso problema da transformação dos valores em preço)
desaparecem, quando se abandona a análise da mercadoria particular e do capital
particular em proveito do capital total (categoria que pode ser apreendida somente
pelo conceito, não num plano empírico), do qual as mercadorias particulares e
os capitais particulares são apenas “partes alíquotas”. Não se pode determinar o
valor de uma mercadoria particular; mas isso não significa que esse valor seja
criado só na troca (aqui, Kurz polemiza constantemente contra toda e qualquer
concepção “relativista” do valor, que ele qualifica de tipicamente pós-moderna).
O valor é “realmente” (no sentido de uma projeção fetichista) dado pelo trabalho
abstrato, que constitui sua “substância”. O que conta é a massa global (ou total)
de valor; a mercadoria particular não tem “valor” mensurável, mas consegue
realizar um “preço” na concorrência. Com efeito, uma mercadoria pode ter um
valor quase nulo (quando ela é produzida por máquinas) e obter, mesmo assim,
um preço elevado. A soma total dos valores e a soma total dos preços coincidem
necessariamente – mas não o valor e o preço da mercadoria particular.
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Esse deslocamento do eixo conceitual do capital particular para o nível do
capital total (Marx hesitava entre as duas abordagens, e Kurz, por assim dizer,
liberta-o de suas incertezas) permite efetivamente a Kurz esclarecer, de uma maneira
surpreendente, problemas como a relação entre a taxa e a massa de lucro ou
a questão do trabalho produtivo. Certamente muitos “economistas marxistas” não
estarão de acordo, mas dificilmente poderão evitar medir forças com os argumentos
de Kurz. A discussão vai muito além de uma batalha erudita entre economistas
marxistas, quando se chega à questão do “limite interno” da produção capitalista
causado pela queda da massa total de valor. Kurz dedica a isso a última parte do
livro, precisando argumentos que há muito tempo vem trazendo à baila. Em contrapartida,
o final é meio inesperado: ele se pergunta se não estamos indo de novo
rumo a um “dinheiro sem valor”. Enquanto a massa nominal de dinheiro no mundo
(incluindo as ações, os preços imobiliários, os créditos, as dívidas, os derivativos
financeiros) aumenta sem parar, aquilo do qual o dinheiro é tido por representante,
o trabalho, reduz-se a proporções cada vez menores. Assim, o dinheiro quase não
tem mais valor “real”, e uma gigantesca desvalorização do dinheiro (primeiramente
sob forma de inflação) será inevitável. Mas depois de séculos, durante os
quais o dinheiro constituiu a mediação social numa escala cada vez maior, sua
desvalorização não organizada, mas forçada, não pode provocar nada mais do que
uma gigantesca regressão social e o abandono de grande parte da atividade social,
vista como não mais “rentável”. O fim da trajetória histórica do capitalismo corre
o risco de nos empurrar a um “retorno perverso” do sacrifício, a uma barbárie nova
e pós-moderna. Com efeito, o capitalismo está anulando até mesmo os magros
“progressos” que trouxe e exigindo incessantemente dos homens “sacrifícios” para
a salvação do fetiche-dinheiro. Os cortes na saúde pública são até comparados
por Kurz aos sacrifícios humanos da história antiga, praticados para acalmar os
deuses furiosos, e ele termina afirmando que “os sacerdotes sanguinários astecas
foram humanos e doces se comparados aos burocratas-sacrificadores do fetiche
global do capital que atingiu seu limite interno histórico”.
Por que as teorias de Kurz, apesar de sua força intelectual inegável, tiveram até
aqui um impacto que se pode chamar de apenas limitado na crítica do capitalismo,
pelo menos na França? Elas são muito discutidas na internet, e Kurz obteve na
Alemanha certo sucesso de livraria, principalmente nos anos 1990. Mas, embora
a crise dos últimos anos tenha confirmado suas análises, a crítica do valor continuou
mantendo seu caráter meio “esotérico” – um discurso para “iniciados”. Por
que aqueles que Kurz chamava de “dinossauros” marxistas (até em suas versões
pós-modernas) e os economistas “alternativos” keynesianos, ligados, segundo
ele, à fase do capitalismo que acabou definitivamente de chegar ao fim, e cujos
discursos praticamente não evoluíram em quarenta anos, tornaram-se novamente
os pontos de referência daqueles que querem combater a devastação da vida pelo
capital? Kurz sempre afirmava que o capitalismo está desaparecendo ao mesmo
tempo que os seus velhos adversários, especialmente o movimento operário e os
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seus intelectuais, que tinham completamente interiorizado o trabalho e o valor, e
cujo horizonte não ia além da “integração” dos operários – e em seguida de outros
grupos “subalternos” – na sociedade mercantil. Por que a crítica do valor, que
pretende ter compreendido o caráter fundamentalmente novo da situação atual,
tem uma “penetração” tão difícil no público?
Uma primeira razão – menos importante – é a ausência de uma estratégia de
ocupação do espaço público: Kurz, assim como os outros fundadores da crítica do
valor, não são nem universitários nem midiáticos, limitando-se aos espaços que
são colocados à sua disposição. Preferem sempre o seminário de aprofundamento
com os leitores da revista à participação num grande colóquio eclético. Ficar à
margem é para eles signo de honra, mas torna lenta a difusão de suas ideias.
Além disso, a prosa de Kurz, se sabe ser mordaz e brilhante nos escritos de
“divulgação”, é por vezes, nas obras mais teóricas, difícil de ler e ainda mais de
traduzir, um pouco comparável à de Adorno. Mas, em um nível mais profundo,
são principalmente a teoria da crise e o questionamento da luta de classes que
suscitam resistências. Para Kurz, não estamos mais na presença de uma crise
“cíclica” ou de “crescimento” do capitalismo, mas vivemos o fim de uma longa
época histórica, sem saber se o futuro será melhor ou se será, antes de tudo, a
queda numa situação em que a grande maioria da humanidade não será útil, nem
mais para ser explorada, mas simplesmente “supérflua” (para a valorização do
capital). E ninguém pode controlar essa máquina em disparada! Essa perspectiva
se vê logo rechaçada, porque realmente faz medo, muito mais medo do que a
afirmação de que os mesquinhos especuladores roubam nosso dinheiro (mas que
o Estado restabelecerá a justiça para o povo!).
A crítica do valor não quer se fazer aceitar e não está a serviço das necessidades
de um público. Ela critica, com efeito, quase todas as formas de oposição passadas
e presentes que se mantêm prisioneiras da forma-valor e que até contribuíram
para seu pleno desenvolvimento. Do mesmo modo, Kurz rejeitava quase toda a
tradição marxista e entrava frequentemente em polêmica com seus representantes
contemporâneos, rompendo com os consensos e os ritos dos meios marxistas
universitários. Assim, estes lhe opuseram, o máximo de tempo possível, uma
“conspiração do silêncio”.
Mas até aqueles que reconhecem o poder heurístico da leitura da realidade capitalista
proposta por Kurz reprovam não raro a crítica do valor por ela não indicar
uma “prática” possível. “A análise é verdadeira – mas o que fazer?”, escutamos
alguém falar. Kurz é claro a esse respeito: a teoria já é uma forma de práxis, ela
contribui principalmente para desnaturalizar as categorias da vida capitalista. Mas
ele desconfia tanto dos movimentos dirigidos contra os aspectos mais superficiais
do capitalismo, como o mercado financeiro, e susceptíveis de se degenerarem
em populismo, quanto da “falsa imediatidade” dos projetos de uma “economia
alternativa”. Criar uma sociedade em que a produção e a circulação dos bens não
passam mais pela mediação autonomizada do dinheiro e do valor, mas que são
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“Viagem ao coração das trevas” do capitalismo • 123
organizadas de acordo com as necessidades – eis aí a tarefa enorme que se impõe,
depois de séculos de sociedade mercantil. Se Kurz formula a necessidade disso,
ele não explica como chegar. Mas poucas teorias se aproximaram tanto quanto a
sua do “coração das trevas” do sistema fetichista do capital.
Referências bibliográficas
KURZ, R. Avis aux Naufragés. Paris: Lignes, 2005, 192p.
______. Geld ohne Wert: Grundrisse zu einer Transformation der Kritik der politischen
Ökonomie [Dinheiro sem valor: fundamentos para uma transformação da crítica da
economia política]. Berlin: Horlemann, 2012, 419p.
______. Vies et mort du capitalisme: chroniques de la crise. Textos traduzidos por Olivier
Galtier, Wolfgang Kukulies e Luc Mercier. Paris: Lignes, 2011, 224p.
Resumo
Comentando o lançamento de uma coletânea em francês de artigos de Robert
Kurz, o texto faz um balanço de sua obra em geral, concentrando-se nas ideias
principais e nos livros mais recentemente publicados. A crise econômica que se
iniciou em 2008 foi vista por Kurz como a confirmação de seu diagnóstico de
crise irreversível do capitalismo, para a qual a esquerda, tanto a tradicional como
a dos movimentos de reação à crise, não tem proposto solução verdadeira, isto
é, que ultrapasse o marco social do capitalismo. A partir daí, o texto reconstitui
outras dimensões do pensamento de Kurz, como a discussão da teoria do valor
e a relação entre história e lógica de exposição das categorias na obra de Marx,
voltando por fim à crise atual em seu aspecto de crise do dinheiro como forma
indissociável do capital.
Palavras-chave: Robert Kurz, crise irreversível, teoria do valor, crítica da esquerda,
lógica e história.
Abstract
As a commentary of the French publication of collected articles of Robert
Kurz, the present text makes an account of his work in general, concentrating
itself on his main ideas and most recently published books. The economic crisis
initiated in 2008 was seen by Kurz as the confirmation of his diagnosis of the
inevitability of crisis in capitalism, for which the left, both the traditional and the
recent contestation movements, has no real solution, i.e. a solution that actually
overcomes capitalism in its social conditions. From this point, the text goes to other
related dimensions of Kurz’s thought, as the theory of value and the relationship
between History and the logic of conceptual exposition in the work of Marx, finally
coming back to the actual crisis in its aspect of money crisis as inseparable
from the form of capital.
Keywords: Robert Kurz, irreversible crisis, theory of value, criticism of the left,
Logics and History.
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JAPPE: En busca de las raíces del mal

lundi, janvier 4th, 2016

EN BUSCA DE LAS RAÍCES DEL MAL
Consideraciones sobre las categorías Fundamentales del capitalismo

IMPARTIDA POR: Anselm Jappe

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Las diferentes crisis -económica, ecológica, energética, social, subjetiva- no están simplemente “ligadas” entre sí: son la expresión de una crisis fundamental.
Hay buenas razones para pensar que estamos viviendo el fin de una larga época histórica: la época en la que la actividad productiva y los productos no sirven para satisfacer necesidades, sino para alimentar el ciclo incesante del trabajo que valoriza el capital y del capital que emplea trabajo. La mercancía y el trabajo, el dinero y la regulación estatal, la competencia y el mercado: detrás de las graves crisis financieras que se repiten, se perfila la crisis de todas estas categorías, las cuales lejos de formar parte de la existencia humana desde siempre, son propias del capitalismo.
En medio de enormes peligros, se abre une oportunidad de liberación. Es hora de pensar el fin del trabajo y del dinero, del mercado y del estado como una contribución al esfuerzo colectivo del pensamiento crítico en su búsqueda de una mejor comprensión de las cabezas de la hidra capitalista….

******

Anselm Jappe. Nació y creció en Alemania. Estudió filosofía en Italia y en Francia. Es autor de varios libros, entre los cuales: Guy Debord (Anagrama), Las aventuras de la mercancía. Por una nueva crítica del valor (Pepitas de Calabaza, de próxima publicación), Crédito a muerte y El absurdo mercado de los hombres sin cualidades (con la misma editorial). Ha colaborado con las revistas alemanas Krisis y Exit! (fundadas por Robert Kurz), que han desarrollado la “crítica del valor”.

 

link da transmissão ao vivo:

http://original.livestream.com/komanileltv

JAPPE: O dinheiro está se tornando obsoleto?

vendredi, décembre 11th, 2015

Le texte en français est déjà publié ici: L’argent est-il devenu obsolète?

En español aca: http://www.jornada.unam.mx/2011/12/23/opinion/018a1pol

O dinheiro está se tornando obsoleto?

Por Anselm Jappe

A mídia e as instâncias oficiais querem nos deixar já preparados: muito em breve, uma nova crise financeira mundial vai se desencadear, e ela será pior do que a de 2008. Fala-se abertamente de « catástrofes » e de « desastres ». Mas o que vai acontecer depois? Como serão nossas vidas depois de um desabamento dos bancos e das finanças públicas em larga escala? A Argentina já passou por isso em 2002. Ao preço de um empobrecimento em massa, a economia desse país pôde em seguida subir de novo a rampa: mas, nesse caso, tratava-se apenas de um país. Atualmente, todas as finanças européias e norte-americanas correm o risco de naufragar, e a possibilidade da vinda de um salvador está fora de questão.

Em que momento o crash da bolsa não mais será uma novidade da qual tomamos conhecimento pela mídia e passará a ser um acontecimento que perceberemos ao sair na rua? Resposta: quando o dinheiro perder sua função habitual. Seja o dinheiro se tornando raro (deflação), seja ele circulando em quantidades enormes, mas desvalorizadas (inflação). Nos dois casos, a circulação das mercadorias e dos serviços ficará cada vez mais lenta até parar completamente: os seus possuidores não encontrarão quem possa pagar em dinheiro, em dinheiro que tenha « valor » e que permita, por sua vez, comprar outras mercadorias e serviços. Eles vão, então, guardá-las para si. Teremos lojas cheias, mas sem clientes, fábricas em perfeito estado, prontas para funcionar, mas sem ninguém nela trabalhando, escolas aonde os professores não mais vão, porque eles ficaram meses sem salário. Teremos de nos dar conta de uma verdade tão evidente quanto não a víamos: não existe nenhuma crise na própria produção. A produtividade em todos os setores aumenta continuamente. As superfícies cultiváveis da terra poderiam alimentar toda a população do globo, e as fábricas e indústrias produzem até muito mais do que é necessário, desejável e sustentável. As misérias do mundo não se devem, como na Idade Média, a catástrofes naturais, mas a uma espécie de sortilégio que separa os homens de seus produtos.

O que não funciona mais é a « interface » que se coloca entre os homens e o que eles produzem: o dinheiro. Na modernidade, o dinheiro se tornou a « mediação universal » (Marx). A crise nos coloca diante do paradoxo fundador da sociedade capitalista: a produção de bens e de serviços nela não é mais um objetivo, mas somente um meio. O único objetivo é a multiplicação do dinheiro, é investir um real para dele fazer dois. E quando esse mecanismo entra em pane, é toda a produção « real » que sofre e que pode até mesmo se ver totalmente bloqueada. Assim, como Tântalo do mito grego, nós nos encontramos diante das riquezas que, no momento em que queremos pegá-las, retiram-se: já que não podemos pagar. Essa renúncia forçada sempre foi o apanágio do pobre. Mas agora ¡ª o que constitui uma situação inédita ¡ªtoda a sociedade, ou quase, está passível de passar por isso. A última palavra do mercado é, então, deixar morrer de fome no meio das comidas amontoadas por toda parte e que apodrecem, sem que ninguém possa botar a mão.

Entretanto, os detratores do capitalismo financeiro nos garantem que o mercado financeiro, o crédito, e as bolsas não passam de excrescências em um corpo são. Um vez a bolha estourada, haverá turbulências e falências, mas, no fim das contas, tudo não passará de uma sangria salutar depois da qual poderemos recomeçar com um economia real mais sólida. Verdade? Hoje, quase tudo que obtemos é por meio de um pagamento. Pelo menos essa maioria da população que vive na cidade não poderia alimentar a si mesma, (nem se aquecer), nem gozar da iluminação, nem se cuidar, nem se deslocar. Nem mesmo durante três dias. Se o supermercado, a companhia de energia elétrica, o posto de gasolina e o hospital só aceitam dinheiro do « bom » (por exemplo, uma moeda estrangeira forte, e não cédulas impressas pelo próprio banco nacional e completamente desvalorizadas), e se já não há tanto assim, estamos chegando muito rápido à desolação. Se somos bastante numerosos, e estamos prontos para a « insurreição », nós ainda podemos tomar de assalto um supermercado, ou fazer ligações elétricas diretamente nos postes de eletricidade. Mas quando o supermercado não estiver mais abastecido e a central de energia elétrica parar por não poder pagar seus trabalhadores e fornecedores, o que fazer? Poderíamos organizar trocas, formas de solidariedade novas, trocas diretas: será até uma bela ocasião para renovar o « laço social ». Mas quem é que pode acreditar que chegaremos em muito pouco tempo, e em larga escala, ao meio do caos e das pilhagens? Iremos ao campo, dizem alguns, para se apropriar diretamente dos recursos mais básicos. É pena que a União Européia tenha pagado durante décadas aos camponeses para cortarem suas árvores, arrancar suas vinhas e matar seu gado¡K Depois do desabamento dos países do Leste, milhões de pessoas sobreviveram graças a parentes que viviam no campo e às pequenas hortas. Quem poderá dizer o mesmo na França e na Alemanha?

Não se pode ter certeza de que chegaremos a esses extremos. Mas até um desabamento parcial do sistema financeiro nos colocará diante das conseqüências pelo fato de que nós somos consignatários, estamos mão e punho ligados ao dinheiro, confiando-lhe a tarefa exclusiva de garantir o funcionamento da sociedade. O dinheiro existe desde o alvorecer da história, asseguram-nos: mas nas sociedades pré-capitalistas, ele não jogava mais do que um papel marginal. Foi apenas nas últimas décadas que nós chegamos ao ponto em que quase cada manifestação da vida passa pelo dinheiro e em que o dinheiro se infiltrou nos mais recônditos recantos da existência individual e coletiva. Sem o dinheiro que faz as coisas circularem, somos como um corpo sem sangue.

Mas o dinheiro « apenas » é real quando ele é a expressão de um trabalho verdadeiramente executado e do valor no qual o trabalho se representa. O resto do dinheiro não passa de uma ficção que se baseia unicamente na confiança mútua dos atores ¡ª uma confiança que pode se evaporar, como se vê atualmente. Estamos assistindo a um fenômeno não previsto pela ciência econômica: não assistimos à crise de uma moeda, e da economia que ela representa, em proveito de uma outra mais forte. O euro, o dólar, o iene, estão todos em crise, e os raros países ainda com nota AAA pelas agências de rating1 não poderão por conta própria salvar a economia mundial. Nenhuma das receitas econômicas propostas funciona, em lugar nenhum. O mercado livre funciona tão mal quanto o Estado, a austeridade tão mal quanto o aquecimento da economia, o keynesianismo tão mal quanto o monetarismo. O problema se situa em um problema mais profundo. Estamos assistindo a uma desvalorização do dinheiro enquanto tal, à perda de seu papel, portanto, estamos assistindo a sua obsolescência. Mas não por uma decisão consciente de uma humanidade finalmente exausta daquilo de já Sófocles chamava « a mais funesta das invenções dos homens », mas por um processo não controlado, caótico e extremamente perigoso. É como se tirássemos a cadeira de rodas de alguém depois de lhe ter durante muito tempo privado do uso natural das pernas. O dinheiro é nosso fetiche: um deus que nós mesmos criamos, mas do qual cremos depender e em favor do qual estamos prontos a tudo sacrificar para apaziguar suas cóleras.

O que fazer? Vendedores de receitas alternativas não faltam: economia social e solidária, sistema de troca local, moedas seladas2, ajuda mútua cidadã¡K Isso poderia, no melhor dos casos, até funcionar em pequenos nichos, enquanto o restante do entorno ainda funciona. Uma coisa, porém, é certa: não basta « se indignar » diante dos « excessos » do mercado financeiro ou da « avidez » dos banqueiros. Mesmo isto sendo algo bem real, não é a causa, mas a conseqüência do resfôlego da dinâmica capitalista. A substituição do trabalho vivo ¡ª única fonte de valor que, sob forma de dinheiro, é a finalidade da produção capitalista ¡ª pela tecnologia ¡ª que não criam valor ¡ª quase fez esvair-se a fonte de produção de valor. O capitalismo, ao desenvolver, sob a pressão da concorrência, as tecnologias, serrou, ao longo desse processo, o galho sobre o qual se mantinha sentado. Esse processo, que faz parte de sua lógica de base desde o início, superou a soleira crítica nas últimas décadas. A não-rentabilidade do emprego de capital não pôde ser mascarado senão com recursos cada vez mais massivos ao crédito, que é um consumo antecipado dos ganhos esperados para o futuro.Agora, até mesmo esse prolongamento artificial da vida do capital parece ter esgotado todos seus recursos.

Pode-se, assim, colocar-se a necessidade ¡ª mas também constatar a possibilidade, a chance ¡ª de sair do sistema baseado no valor e no trabalho abstrato, no dinheiro e na mercadoria, no capital e no salário. Mas esse salto no desconhecido dá medo, mesmo para aqueles que nunca deixam de fustigar os crimes dos « capitalistas ». No momento, o que prevalece é, antes de tudo, a caça ao vilão especulador. Mesmo que não se possa fazer outra coisa senão compartilhar dessa indignação diante dos lucros dos bancos, é imperativo dizer que ela está muito abaixo de uma crítica do capitalismo enquanto sistema. Não surpreende que Obama e Georges Soros digam que a compreendem. A verdade é bem mais trágica: se os bancos afundarem, se eles falirem em cadeia, se eles pararem de colocar dinheiro nos caixas eletrônicos, corremos o risco de afundar com eles, porque há muito tempo nos foi retirada a possibilidade de viver de outro modo que não seja gastando dinheiro. Será muito bom reaprender ¡ª mas quem sabe a que « preço » isso vai acontecer.

Ninguém pode dizer honestamente que sabe como organizar a vida das dezenas de milhões de pessoas quando o dinheiro tiver perdido sua função. Vai ser bom pelo menos admitir o problema. Talvez seja necessário se preparar para o « pós-dinheiro », bem como para o pós-petróleo.


1 Agências de classificação de risco [N. T.].

2 Trata-se de uma moeda que, à imagem dos bens de consumo (comida, vestimenta, casa) perde seu valor com o passar do tempo. Essa noção, fundada por Silvio Gesell na passagem do século XIX para o XX, baseia-se na idéia que quem possui a moeda tem uma vantagem sobre quem possui o bem, pois quem tem o bem precisa se desfazer dele para que não pereça de algum modo, monetariamente ou fisicamente. Já o detentor da moeda pode adiar sua compra [N. T.].

JAPPE: ¿Ser libres para la liberación?

vendredi, décembre 11th, 2015

[Tem uma tradução pro português postada aqui: JAPPE: falta um horizonte pós-capitalista]

 

¿Ser libres para la liberación?

Anselm Jappe

 

Hay dos noticias. La buena noticia es que nuestro viejo enemigo, el capitalismo, parece encontrarse en una crisis gravissima. La mala noticia es que, por el momento, no se ve ninguna forma de emancipación social que esté realmente a nuestro alcance; además nada puede garantizar que el fin posible del capitalismo desemboque en una sociedad mejor. Es como constatar que la cárcel en donde estamos encerrados desde hace mucho se ha incendiado, pero que las cerraduras de las puertas siguen bloqueadas.

Quisiera iniciar con un recuerdo personal. Visité México por primera vez en1982. Tenía 19 años, y mi mochila en la espalda. Vivía entonces en Alemania. En esos tiempos, se hablaba del “Tercer Mundo” y su miseria, pero otra cosa era descubrirlo personalmente y ver a los niños descalzos pidiendo limosna en la calle. En la ciudad de México, me hospedaba en una especie de hotel de la juventud gestionado por unos suizos. Una noche, al regresar, muy afectado por la visión de la pobreza en la ciudad, empecé a leer un ejemplar de la revista alemana Der Spiegel que se encontraba por ahí. Me fijé en un largo reportaje sobre el estado de la sociedad alemana, que en ese momento, parecía encontrarse en su apogeo. La descripción era de lo más desoladora: sólo se hablaba de depresiones, de farmacodependencias, de familias desestructuradas, de jóvenes desmotivados y del deterioro social. Yo mismo me sentía hundido en un abismo. Ya tenía una cierta experiencia de la crítica teórica y práctica del capitalismo, del cual pensaba todo el mal posible. Pero nunca antes había sentido con tanta fuerza en qué mundo estamos viviendo, un mundo en el cual algunos mueren de hambre y los otros, los que supuestamente se encuentran del lado mejor, son tan infelices que se atiborran de medicamentos o se matan. Sentía que los pobres son infelices y los “ricos” también, de tal forma que el capitalismo es un sufrimiento para todos. Entendí que este sistema, en última instancia, no es provechoso para nadie, que “desarrollar” a los pobres para que se vuelvan como los ricos no serviría de nada, y que la sociedad de la mercancía es el enemigo del género humano.

Al mismo tiempo, en 1982, este sistema parecía fuerte, muy fuerte. Era deprimente considerar la correlación de fuerzas entre quienes, de una forma o de otra, querrían cambiar ese sistema y el sistema mismo, con el consenso que a pesar de todo lograba mantener y con los beneficios materiales que todavía podía distribuir.

Hoy, parece que la situación ha cambiado radicalmente. En estos días, en Europa, las instancias políticas y los medios evocan guiones de posibles catástrofes, del tipo argentino. No es necesario comentar más el hecho de que, en todas partes, se percibe una crisis del capitalismo muy grave, permanente por lo menos desde 2008. Quizás algunos de ustedes han leído la traducción de un artículo mío(1), en donde trato de imaginar lo que pasaría si el dinero, todo el dinero, empezaría a perder su papel, después de un derrumbe financiero y económico. El periódico francés mas importante, Le Monde, lo publicó y muchos lectores lo comentaron : sin embargo, pienso que hace apenas unos años, me hubieran clasificado en la misma categoría que los que ven ovnis…

Una primera observación que es importante hacer es que esta crisis del capitalismo no se debe a las acciones de sus adversarios. Todos los movimientos revolucionarios modernos y casi toda la crítica social siempre imaginaron que el capitalismo iba a ser vencido por fuerzas organizadas, decididas a abolirlo y a sustituirlo por algo mejor. La dificultad era vencer el inmenso poder del capitalismo, que se ubicaba tanto en las armas de sus ejércitos como en lo que había metido en las cabezas de la gente; pero si esto se lograba, la solución estaba al alcance de la mano. De hecho, la existencia de un proyecto de sociedad alternativa era lo que, en última instancia, causaba las revoluciones.

Lo que vemos hoy, es el derrumbe de un sistema, su auto-destrucción, su agotamiento, su hundimiento. Finalmente, se topó con sus límites, con los límites de la valorización del valor, que se ubicaban en su núcleo desde un principio. El capitalismo es esencialmente una producción de valor, que se representa en el dinero. En la producción capitalista, solo lo que permite conseguir dinero tiene interés. Esto no se debe principalmente a la codicia de unos capitalistas malvados. Deriva del hecho de que solo el trabajo puede atribuirles “valor” a las mercancías. Esto implica que las tecnologías no añaden un valor suplementario a las mercancías. Conforme más se usan maquinarias y nuevas tecnologías, menos valor hay en cada mercancía. Pero, la competencia empuja incesantemente a los dueños del capital a utilizar tecnologías que remplacen al trabajo. De esta manera, el capitalismo destruye sus propias bases, y lo hace desde el inicio. Solo el aumento continuo de la producción de mercancías puede contrarrestar el hecho de que cada mercancía contiene cada vez menos “valor”, y por lo tanto también menos plusvalor, traducible en dinero. Son conocidas las consecuencias ecológicas y sociales de esta loca carrera hacia una mayor productividad. Pero es también importante subrayar que la caída de la masa de valor no puede ser compensada eternamente y que provoca finalmente una crisis de la acumulación del capital mismo. En las últimas décadas, una acumulación deficiente ha sido sustituida por la simulación a través de la finanza y el crédito. Ahora, esta forma de vida “bajo perfusión” del capital encontró también sus límites y la crisis del mecanismo de la valorización parece ahora irreversible.

Esta crisis no es, como algunos quieren hacer creer, una trampa de los capitalistas, para imponer medidas aun más desfavorables a los trabajadores y los beneficiarios de ayudas públicas, para desmantelar a las estructuras públicas y aumentar las ganancias de los bancos y de los super-ricos. Es cierto que algunos actores económicos logran sacar grandes beneficios de la crisis, pero esto solo significa que un pastel cada vez más pequeño se divide en porciones más grandes entre un número más reducido de competidores. Es evidente que esta crisis está fuera de control y amenaza a la supervivencia del sistema capitalista en cuanto tal.

Por supuesto, no significa necesariamente que estemos asistiendo al último acto del drama iniciado hace 250 años. Que el capitalismo haya alcanzado sus límites – en términos económicos, ecológicos, energéticos – no significa que vaya a derrumbarse de un día para otro, aunque esto no esté del todo excluido. Más bien se puede prever un largo periodo de declive de la sociedad capitalista, con unos islotes repartidos en todas partes, a veces protegidos por muros, en donde la reproducción capitalista aún funcionaría, y con amplias regiones de tierra quemada, en donde los sujetos post-mercantiles buscarían sobrevivir de cualquier forma posible. El tráfico de drogas y los que rebuscan en los basureros son dos de los rostros más emblemáticos de un mundo que reduce a los seres humanos a la condición de “desechos”, cuyo mayor problema ya no es el de ser explotados sino simplemente de resultar superfluos desde el punto de vista de la economía mercantil, sin tener la posibilidad de regresar a las formas pre-capitalistas de una economía de subsistencia, basada en la agricultura y la artesanía. Ahí donde el capitalismo y su ciclo de producción y consumo dejará de funcionar, no será posible regresar a las antiguas formas sociales. El riesgo es entrar en nuevas configuraciones que combinen los peores elementos de las formaciones sociales anteriores. Y no hay duda de que quienes vivirán en los sectores de la sociedad que aún funcionen van a defender sus privilegios con todo, con armas y técnicas de vigilancia cada vez más perfeccionadas. Como bestia agonizante, el capitalismo puede todavía causar terribles estragos, no solo desencadenando guerras y violencias de todo tipo, sino también provocando daños ecológicos irreversibles, con la diseminación de OGM, de nanopartículas, etc. Entonces, la pésima salud del capitalismo sólo es una condición necesaria para el advenimiento de una sociedad liberada; de ninguna manera es una condición suficiente, en términos filosóficos. El hecho de que la cárcel esté en llamas no nos sirve de nada si la puerta no se abre, o si se abre hacia un precipicio.

Implica una gran diferencia con el pasado: durante más de un siglo, la tarea de los revolucionarios fue encontrar cómo acabar con el monstruo. Si se lograba eso, era inevitable que el socialismo, la sociedad libre – o cualesquiera que fuera su nombre – le sucediera. Hoy, la tarea de los que una vez eran los revolucionarios se presenta de manera invertida: frente a los desastres provocados por las revoluciones permanentes operadas por el capital, se trata de “conservar” algunas adquisiciones esenciales de la humanidad y tentar de llevarlas hacia una forma superior.

Ahora ya no es necesario demostrar la fragilidad del capitalismo, el cual ha agotado su potencial histórico de evolución – y esto es una buena noticia. Otra buena noticia es que tampoco se debe de concebir la alternativa al capitalismo bajo formas que más bien lo continúan. Diría que hay mucho más claridad en lo que se refiere a los objetivos de la lucha hoy en día que hace cuarenta años. Afortunadamente, dos maneras – a menudo entrelazadas – de concebir el post-capitalismo, que dominaron durante todo el siglo XX, han perdido mucha credibilidad, aunque estén lejos de haber desaparecido. Por un lado, el proyecto de superar el mercado con el Estado, la centralización, la modernización, y de confiar la lucha para alcanzar este objetivo a organizaciones de masas dirigidas por funcionarios. Poner a trabajar a todos era la meta principal de estas formas del “socialismo real”: hay que recordar que tanto para Lenin como para Gramsci, la fábrica de Henry Ford era el modelo para la producción comunista. Es cierto que la opción estatal sigue teniendo sus adeptos, sea bajo la forma del entusiasmo con el caudillo Chavez o con el planteamiento de más intervencionismo estatal en Europa. Pero en conjunto, el leninismo en todas sus variantes ha tenido que reducir su control sobre los movimientos contestatarios desde hace treinta años, y esto es muy positivo.

La otra manera de concebir la superación del capitalismo en una forma que más bien pareciera ser su intensificación y modernización se basa en una confianza ciega en los beneficios de las fuerzas productivas y la tecnología. En ambos casos, la sociedad socialista o comunista era concebida esencialmente como una distribución más justa de los frutos del desarrollo de una sociedad industrial por lo demás ampliamente conservada. La esperanza de que la tecnología y las maquinarias vayan a resolver todos nuestros problemas ha sufrido golpes severos desde hace cuarenta años, por el nacimiento de una conciencia ecológica y porque los efectos paradójicos de la tecnología sobre los seres humanos se han hecho más evidentes. (Quisiera recordar en este lugar que Iván Illich, a pesar de las reservas que podría formular sobre algunos aspectos de su obra, ha tenido el enorme mérito de poner en evidencia estos aspectos paradójicos, y quebrantar así la fe en el “Progreso”). Si bien la creencia que el progreso tecnológico lleva al progreso moral y social ya no asume la forma de la exaltación de la siderurgia o las centrales nucleares “socialistas”, o la del elogio incondicional del productivismo, ha encontrado sin embargo una nueva vida en las esperanzas a menudo grotescas que algunos nutren a propósito de la informática y la producción “inmaterial”. Es el caso por ejemplo en ocasión del debate actual sobre la “apropiación”, al cual se ha asociado recientemente los conceptos de “commons” y de “bien común”. Es cierto que toda la historia (y la prehistoria) del capitalismo ha sido la historia de la privatización de los recursos que antes eran comunes, como lo indica el caso ejemplar de los cercamientos en Inglaterra, en los siglos XVII y XVIII. Según una perspectiva ampliamente difundida, por lo menos en el medio de la informática, la lucha por la gratuidad y el acceso ilimitado a los bienes digitales es una batalla que tiene la misma importancia histórica y sería la primera en muchos siglos que los partidarios de la gratuidad y el uso común de los recursos hayan logrado ganar. Sin embargo, los bienes digitales nunca son bienes esenciales. Puede resultar simpático disponer gratuitamente de la última música o de tal video-clip, pero los alimentos, la calefación o la vivienda no son descargables en internet. Al contrario, están sometidos a una rarefacción y a una comercialización cada vez más intensas. Compartir carpetas (file-sharing) puede ser una práctica interesante, pero no es más que un epifenómeno si se compara con la rarefacción del agua potable en el mundo o con el calentamiento climático.

La tecnofilia bajo formas renovadas parece hoy menos “pasada de moda” que el proyecto de tomar el poder y constituye quizás un obstáculo mayor para una ruptura profunda con la lógica del capitalismo. Sin embargo, propuestas como la del decrecimiento, el ecosocialismo, la ecología radical o el retorno de los movimientos campesinos en todo el mundo indican, en su heterogeneidad y con todos sus límites, que una parte de los movimientos contestatarios actuales no creen que el progreso técnico tenga la misión de llevarnos a la sociedad emancipada. Y esto es también una buena noticia…

Entonces, diría que existe actualmente una claridad más grande en cuanto a los lineamientos de una verdadera alternativa al capitalismo. Esbozos como los que se presentaron en el seminario realizado en Cideci a finales de 2009 me parecen totalmente razonables(2). Sobre todo, es muy importante no limitarse a una crítica de la sola forma ultra-liberal del capitalismo, sino de apuntar al capitalismo en su conjunto, es decir a la sociedad mercantil basada en el trabajo abstracto y el valor, el dinero y la mercancía.

Si estamos un poco más seguro de que el capitalismo está en crisis y si tenemos un poco más de claridad en lo que se refiere a las alternativas, surge la siguiente pregunta: ¿cómo llegar a ellas? No quiero plantear aquí consideraciones estratégicas o pseudo-estratégicas, sino más bien preguntarme qué clase de mujeres y de hombres podrán realizar la transformación social necesaria. Ahí es donde radica el problema. Para decirlo de entrada, podemos tener la impresión de que la verdadera “regresión antropológica” provocada por el capital, sobre todo en las últimas décadas, también ha alcanzado a quienes podrían o quisieran oponerse a él. Es un cambio mayor al cual no siempre se le da suficiente atención. La economía mercantil nació en sectores muy limitados de algunos países; posteriormente, conquistó el mundo entero a lo largo de dos siglos y medio, no solo en sentido geográfico sino también al interior de cada sociedad (a veces se llama a ese proceso “colonización interior”). Paulatinamente, cualquier actividad, cualquier pensamiento o sentimiento, adentro de las sociedades capitalistas, tomaba la forma de una mercancía o podía ser satisfecho por mercancías. Se ha descrito a menudo los efectos de la sociedad del consumo y sus consecuencias particularmente nocivas al introducirse en el contexto de sociedades tradicionales consideradas como “atrasadas” (y aquí también podría citar a Iván Illich). Es bien conocido y sobraría repetirlo aquí. Pero no se presenta con suficiente claridad el hecho de que, a causa de esta evolución, la sociedad capitalista ya no aparece dividida simplemente en dominantes y dominados, explotadores y explotados, administradores y administrados, verdugos y víctimas. El capitalismo es, de manera cada vez más visible, una sociedad gobernada por los mecanismos anónimos y ciegos, automáticos e incontrolables, de la producción de valor. Todos parecen a la vez actores y víctimas de este mecanismo, aunque por supuesto los papeles asumidos y las recompensas alcanzadas no son los mismos.

En las revoluciones clásicas, y en su punto más alto en la Revolución española de 1936, el capitalismo era combatido por poblaciones que sentían al capitalismo como una exterioridad, una imposición, una invasión. Le oponían valores, formas de vivir y concepciones de la vida humana totalmente diferentes. Aunque no hay que idealizarlas, constituían de cierta manera una alternativa cualitativa a la sociedad capitalista. Que lo hayan admitido o no, estos movimientos sacaban buena parte de su fuerza de su arraigamiento en ciertas costumbres precapitalistas: en la inclinación al don, a la generosidad, a la vida en colectivo, al desprecio de la riqueza material como fin en sí mismo, en otra percepción del tiempo… Marx tuvo que admitir al final de su vida que lo que quedaba de la antigua propiedad colectiva de la tierra en numerosos pueblos podía constituir una base para una sociedad comunista futura. Hoy, estas formas siguen existiendo, sobre todo entre los pueblos indígenas de América latina y dejo que ustedes digan si pueden formar la base de una sociedad futura emancipada, que tenga profundas raíces en el pasado. Imagino que su respuesta es sí…

Si esto constituye una luz de esperanza, hay que reconocer que significa también a la inversa que, casi en todos los otros lugares, en los países llamados “desarrollados”, en las megapolis del resto del mundo, y hasta en las zonas rurales más apartadas, los individuos sienten cada vez menos a la mercancía omnipresente como un sometimiento ajeno a sus tradiciones, sino, al contrario, como un objeto de deseo. Sus revendicaciones tienen que ver en lo esencial con las condiciones de su participación a este reino, como ya fue el caso del movimiento obrero clásico. Que sea en la forma de un conflicto salarial mediatizado por los sindicatos o de una revuelta en los suburbios, la cuestión es casi siempre la del acceso a la riqueza mercantil. Dicho acceso es generalmente necesario para poder sobrevivir en la sociedad de la mercancía, esto es indudable. Pero es igualmente cierto que estas luchas no plantean la exigencia de superar al sistema actual y crear otras maneras de vivir. De cierta manera, el individuo que pertenece a las sociedades “desarrolladas” de hoy parece más lejos que nunca de una solución emancipatoria. Le faltan las bases subjetivas de una liberación, y por lo tanto también el deseo de esta, porque interiorizó el modo de vida capitalista (competencia, éxito, rapidez, etc.). En general, sus protestas apuntan al miedo de quedar excluido de este modo de vida, o de no alcanzarlo; en muy pocas ocasiones a su mero rechazo. La sociedad mercantil agota las fuentes vivas de la imaginación entre los niños, acosados desde su más temprana edad por verdaderas máquinas para descerebrarlos. Esto es por lo menos tan grave como los recortes en las pensiones, pero no empuja a millones de personas a marchar en las calles o a asediar a los productores de videojuegos y de canales de TV infantiles.

Los movimientos de protesta que aparecen ahora en el escenario no carecen de una cierta ambigüedad. Muchas veces, la gente protesta simplemente porque el sistema no cumple sus promesas. De esta forma, se manifiestan por la defensa del status quo, o más bien del status quo ante. Veamos el movimiento Occupy Wall Street y sus propagaciones. Ahí, se responsabiliza de la crisis actual al sector financiero. Se afirma que la economía, y finalmente la sociedad en su conjunto, están dominadas par la esfera financiera. Según la crítica de la finanza, actualmente muy difundida, los bancos, los seguros, y los fondos especulativos no invierten en la producción real, pero canalizan casi todo el dinero disponible hacia la especulación que solo enriquece a los especuladores, mientras destruye empleos y crea la miseria. El capital financiero, según se dice, puede imponer su ley incluso a los gobiernos de los países más poderosos, cuando es que no prefieren corromperlos. También compran a los medios. Así, la democracia se va vaciando de toda sustancia.

Pero, ¿qué tan seguros estamos de que el poder absoluto de la esfera financiera y las políticas neoliberales que las sostienen son la causa principal de las actuales turbulencias? ¿Y si, al revés, fueran tan solo el síntoma de una crisis mucho más profunda? Lejos de ser un factor que perturba una economía en sí misma sana, la especulación es lo que ha permitido mantener durante las últimas décadas la ficción de la prosperidad capitalista. Sin las muletas ofrecidas por la financiarización, la sociedad de mercado ya se habría derrumbado, con sus empleos y también con su democracia. Lo que se anuncia detrás de las crisis financieras es el agotamiento de las categorías de base del capitalismo: mercancía y dinero, trabajo y valor.

Frente al totalitarismo de la mercancía, no podemos limitarnos a gritar a los especuladores y otros grandes ladrones: “Devuélvenos nuestro dinero”. Más bien es necesario entender el carácter altamente destructor del dinero, de la mercancía, y del trabajo que los produce. Pedir al capitalismo que se sanee, para lograr una mejor repartición y volverse más justo, es una ilusión. Los cataclismos actuales no se deben a una conjuración de la fracción más codiciosa de la clase dominante; son más bien la consecuencia inevitable de los problemas que desde siempre son parte de la naturaleza misma del capitalismo. Vivir a crédito no es una perversión corregible, sino algo como un último estertor para el capitalismo y todos los que viven en este sistema.

Ser conscientes de todo esto permite evitar las trampas del populismo que pretende liberar a “los trabajadores y los ahorradores honestos” (vistos como simples víctimas del sistema) del dominio de un mal personificado por la figura del especulador. Salvar al capitalismo atribuyendo todos sus errores a la actuación de una minoría internacional de “parásitos”: esto ya se ha visto antes en Europa.

La única opción es una verdadera crítica de la sociedad capitalista en todos sus aspectos, y no solo del neoliberalismo. El capitalismo no es únicamente el mercado: el Estado es su otra cara (al mismo tiempo que este está estructuralmente sometido al capital). El Estado nunca puede ser un espacio público de decisión soberana. Incluso en cuanto binomio Estado-Mercado, el capitalismo no es, o ya no es, una mera coacción que se impone desde fuera a unos sujetos siempre refractarios. Desde hace mucho tiempo, el modo de vida que ha creado el capitalismo pasa casi por doquier por altamente deseable y su fin posible por una catástrofe. Invocar a la “democracia” (incluso “directa” o “radical”) no sirve para nada si los sujetos a los que se pretende restituir su voz son unos reflejos del sistema que los contiene.

Es por esto que la consigna “Somos el 99%”, que según se dice ha sido inventada por un ex publicitario pasado a la anti-publicidad (adbusters), Kalle Lasn, y que los medios consideran como “genial”, me parece delirante. ¿Bastaría con liberarse del dominio del 1% más rico y más poderoso de la población para que todos los demás vivieramos felices? Entre estos “99%”, ¿cuántos pasan horas frente a su televisión, explotan a sus empleados, roban a sus clientes, estacionan a su carro en la banqueta, comen en McDonald’s, pegan a su mujer, dejan a sus niños jugar con videjuegos, hacen turismo sexual, gastan su dinero comprando ropa de marca, consultan a sus celulares cada dos minutos, es decir son parte integrante de la sociedad capitalista? Herbert Marcuse ya había definido con mucha claridad la paradoja, el verdadero círculo vicioso de cualquier empresa de liberación (el cual, desde entonces, no dejó de profundizarse): los esclavos ya tienen que ser libres para alcanzar su liberación.

Algunos podrán considerar que estas críticas son excesivas, poco generosas o incluso sectarias. Se dirá que lo importante es que la gente por fin vuelva a moverse, a protestar, que abran los ojos. Que luego van a profundizar las razones de su rebelión; que su grado de consciencia va a elevarse. Es posible y de hecho nuestra salvación depende de esto. Pero, para llegar a este punto, es indispensable criticar todo lo que hay que criticar en estos movimientos, en lugar de correr detrás de ellos. No es cierto que cualquier oposición, cualquier protesta, es en sí misma una buena noticia. Con los desastres que se van a producir en cadena, con las crisis económicas, ecológicas y energéticas que van a profundizarse, es absolutamente seguro que la gente va a rebelarse en contra de lo que le suceda. Pero toda la cuestión es saber cómo van a reaccionar: pueden ponerse a vender droga, enviar a sus esposas a prostituirse; pueden robar las zanahorias orgánicas cultivadas por un campesino o enrolarse en una milicia; pueden organizar una inútil masacre de banqueros o dedicarse a la caza a los migrantes. Pueden limitarse a organizar su propia supervivencia en medio de la debacle. Pueden adherir a movimientos fascistas y populistas, que designan unos culpables a la venganza popular. O, al contrario, pueden luchar para la construcción colectiva de una mejor manera de vivir sobre las ruinas dejadas por el capitalismo. No todo el mundo se va a precipitar sobre esta última opción; incluso sigue siendo la más difícil. Si atrae demasiado poca gente, quedará aplastada. Entonces, lo que podemos hacer hoy, es esencialmente esto: obrar para que las protestas que de cualquier modo no dejarán de surgir, tomen las decisiones apropiadas. Sin lugar a dudas, la presencia de rasgos procedentes de las sociedades precapitalistas puede ampliamente contribuir a la construcción del buen camino.

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Notas:
1) « ¿Se volvió obsoleto el dinero? », La Jornada, 23 de diciembre de 2011.
2) Me refiero en particular a la ponencia de Jérôme Baschet, « Anticapitalismo/postcapitalismo ».

Ponencia realizada en el « IIº Seminario Internacional de reflexión y análisis “Planeta tierra: movimientos antisistémicos”. CIDECI, dic-30 (20011) a ene-02 (2012). »

JAPPE: Hipercapitalismo e hiperdesign

dimanche, juillet 12th, 2015

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JAPPE: falta um horizonte pós-capitalista

jeudi, mai 21st, 2015

Protestos: falta um horizonte pós-capitalista

Teórico próximo ao zapatismo sustenta: embora valorosas, manifestações recentes não superam, ainda, lógica da mercadoria. Parte da solução requer rever obsessão por consumir, acumular e competir

Por Anselm Jappe

| Tradução: Bruna Bernacchio

 fonte: http://outraspalavras.net/posts/protestos-falta-um-horizonte-pos-capitalista/

Há duas notícias. A boa é que nosso velho inimigo, o capitalismo, parece encontrar-se em uma crise gravíssima. A má notícia é que, neste momento, não se vê nenhuma forma de emancipação social que esteja realmente a nosso alcance; além disso, nada pode garantir que o possível fim do capitalismo resulte em uma sociedade melhor. É como constatar que a prisão em que estamos há muito incendiou-se, mas as fechaduras das portas continuam bloqueadas…Gostaria de iniciar com um recordo pessoal. Visitei o México pela primeira vez em 1982. TInha 19 anos e uma mochila nas costas. Vivia na Alemanha. Naqueles tempos, falava-se do “Terceiro Mundo” e sua miséria; mas outra coisa era descobrí-lo pessoalmente e ver as crianças descalças pedindo esmola na rua. Na Cidade do México, hospedava-me em uma espécie de hotel da juventude, gestionado por uns suiços. Uma noite, ao regressar, muito afetado pela visão da pobreza na cidade, comecei a ler um exemplar da revista alemã Der Spiegel, que estava por ali. Demorei-me em uma grande reportagem sobre o estado da sociedade alemã, que naquele momento, parecia encontrar-se em seu apogeu. A descrição era a mais desoladora: só se falava em depressões, dependências farmacêuticas, famílias desestruturadas, jovens desmotivados e deterioração social. Eu me sentia mergulhado num abismo. Já tinha uma certa experiência da crítica teórica e prática do capitalismo, do qual pensava todo o mal possível. Mas nunca antes havia sentido com tanta força o mundo em que vivemos, um mundo onde alguns morrem de fome, e os outros — os que supostamente estão no lado melhor — são tão infelizes que se entopem de medicamentos ou se matam. Sentia que os pobres são infelizes e os “ricos” também, de forma que o capitalismo é um sofrimento para todos. Entendi que esse sistema, em ultima instância, não é proveitoso para ninguém, que “desenvolver” os pobres para que vivam como os ricos não serviria de nada, e que a sociedade da mercadoria é inimiga da espécie humana.Ao mesmo tempo, em 1982, esse sistema parecia forte, muito forte. Era deprimente considerar a correlação de forças entre quem, de uma forma ou de outra, queria mudar esse sistema; e o sistema mesmo, com o consenso que, apesar de tudo, conseguia manter e com os benefícios materiais que ainda podia distribuir.Hoje, a situação parece ter mudado radicalmente. Nesses dias, na Europa, as instâncias políticas e a mídia descrevem roteiros de possíveis catástrofes, do tipo argentino. Não é necessário comentar mais o fato de que, em todas as partes, percebe-se uma crise do capitalismo muito grave, permanente pelo menos desde 2008. Talvez alguns de vocês já tenham lido a tradução de um artigo meu (1), onde trato de imaginar o que passaria se o dinheiro, todo o dinheiro, começasse a perder seu papel, depois de um colapso financeiro e econômico. O jornal francês mais importante, Le Monde, publicou-o e muitos leitores comentaram. Penso que, há poucos anos, teriam me classificado na mesma categoria que aqueles que veem ovnis…Uma primeira observação importante é que essa crise do capitalismo não se deve às ações de seus adversários. Todos os movimentos revolucionários modernos e quase toda a crítica social sempre imaginaram que o capitalismo seria vencido por forças organizadas, decididas a aboli-lo e a substituí-lo por algo melhor. A dificuldade era vencer o imenso poder do capitalismo, que se instalava tanto nas armas de seus exércitos como no que havia metido nas cabeças das pessoas; mas se isso fosse alcançado, a solução estava ao alcance da mão. De fato, a existência de um projeto de sociedade alternativa era o que, em ultima instância, provocava as revoluções.O que vemos hoje, é a derrubada de um sistema, sua auto-destruição, seu esgotamento, seu colapso. Finalmente, topou com seus limites, com os limites da valorização do valor, que estava em seu núcleo desde o princípio. O capitalismo é essencialmente uma produção de valor, que se representa em dinheiro. Na produção capitalista, só o que permite conseguir dinheiro importa. Isso não se deve principalmente à ganância de uns capitalistas malvados. Deriva do fato de que só o trabalho pode atribuir “valor” às mercadorias. Isso implica que as tecnologias não adicionam um valor complementar às mercadorias. Quanto mais as máquinas e novas tecnologias são utilizadas, menos valor há em cada mercadoria. Mas a competição empurra incessantemente os donos do capital a utilizar tecnologias que substituam o trabalho. Dessa maneira, o capitalismo destrói suas próprias bases, e o faz desde o início. Só o aumento contínuo da produção de mercadorias pode compensar o fato de que cada mercadoria tem cada vez menos “valor”, e portanto também menos mais-valia, conversível em dinheiro. São conhecidas as consequências ecológicas e sociais dessa louca corrida em direção a uma maior produtividade. Mas é também importante sublinhar que a queda da massa de valor não pode ser compensada eternamente e provoca, por fim, uma crise da acumulação do próprio capital. Nas últimas décadas, uma acumulação deficiente tem sido substituída pela simulação através da finanças e do crédito. Agora, essa forma de vida “baixo perfusão” do capital encontrou também seus limites e a crise do mecanismo de valorização parece irreversível.Essa crise não é, como alguns querem acreditar, uma armadilha dos capitalistas, para impor medidas ainda mais desfavoráveis aos trabalhadores e aos que se utilizam de serviços e políticas públicas; para desmantelar as estruturas públicas e aumentar os lucros dos bancos e dos super-ricos. É certo que alguns atores econômicos conseguem tirar grande benefício da crise, mas isso só significa que um bolo cada vez menor se divide em porções cada vez maiores, entre um número mais reduzido de competidores. É evidente que essa crise está fora de controle e ameaça a sobrevivência do sistema capitalista enquanto tal.Com certeza, não significa necessariamente que estejamos assistindo ao último ato do drama iniciado há 250 anos. Que o capitalismo tenha alcançado seus limites – em termos econômicos, ecológicos, energéticos – não significa que vai cair de um dia pra outro, ainda que isso não esteja de todo excluído. É mais realista prever um longo período de declínio da sociedade capitalista, com algumas poucas ilhas por todas as partes, às vezes protegidos por muros, onde a reprodução capitalista ainda funcionaria, e com amplas regiões de terras queimadas, onde os sujeitos pós-mercantis buscariam sobreviver de qualquer forma possível. O traficante de drogas e os que reviram as lixeiras são dois dos rostos mais emblemáticos de um mundo que reduz alguns seres humanos à condição de resto, de gente cujo maior problema já não é ser explorado se não de simplesmente tornar-se supérfula do ponto de vista da economia mercantil, sem ter a possibilidade de regressar às formas pré-capitalistas de uma economia de subsistência, baseada na agricultura e no artesanato. Onde o capitalismo e seu ciclo de produção e consumo deixar de funcionar, não será possível regressar às antigas formas sociais. O risco é entrarmos em novas configurações que combinem os piores elementos das formações sociais anteriores. E não há dúvida de que quem for viver nos setores da sociedade que ainda funcionem vai defender seus privilégios com tudo, armas e técnicas de vigilância cada vez mais aperfeiçoadas. Como uma besta agonizante, o capitalismo pode ainda causar terríveis estragos, não só desencadeando guerras e violências de todo o tipo, mas também provocando danos ecológicos irreversíveis, com a disseminação de organismos geneticamente modificados (OGM), de nanopartículas etc. Então, a péssima saúde do capitalismo é apenas uma condição necessária para o advento de uma sociedade liberada; de nenhuma maneira é uma condição suficiente, em termos filosóficos. O fato de que a prisão está em chamas não nos serve de nada se a porta não abre, ou se abre para um precipício.Implica uma grande diferença com o passado: durante mais de um século, a tarefa dos revolucionários foi encontrar formas de acabar com o monstro. Se chegasse a isso, era inevitável que o socialismo, a sociedade livre – ou qualquer que fosse seu nome – adviria. Hoje, a tarefa dos que foram os revolucionários apresenta-se de maneira invertida: frente aos desastres provocados pelas revoluções permanentes operadas pelo capital, trata-se de “conservar” algumas conquistas essenciais da humanidade e tentar levá-las até uma forma de organização social superior.Agora já não é necessário demonstrar a fragilidade do capitalismo, cujo potencial histórico de evolução se esgotou – e isso é uma boa notícia. Outra boa notícia é que tampouco se deve conceber a alternativa ao capitalismo sob formas que o continuam. Diria que há, hoje, muito mais clareza no que se refere aos objetivos da luta do que há quarenta anos. Felizmente, duas maneiras – muitas vezes entrelaçadas – de conceber o pós-capitalismo, que foram dominantes durante todo o século XX, perderam muita credibilidade, ainda que estejam longe de desaparecer. Por um lado, o projeto de superar o mercado com o Estado, a centralização, a modernização, e de confiar a luta para alcançar esse objetivo a organizações de massas dirigidas por funcionários. Colocar todos para trabalhar era a meta principal dessas formas de “socialismo real”. É preciso recordar que, tanto para Lênin quanto para Gramsci, a fábrica de Henry Ford era o modelo para a produção comunista. Claro que a opção estatal continua tendo seus adeptos, seja sob a forma do entusiasmo em relação a Chávez, ou com o planejamento de mais intervencionismo estatal na Europa. Mas no geral, o leninismo, em todas as suas variantes, teve que reduzir sua influência sobre os movimentos de contestação nos últimos trinta anos atrás, e isso é muito positivo.A outra maneira de conceber a superação do capitalismo sob uma forma que mais parece ser sua intensificação e modernização baseia-se em uma confiança cega nos benefícios das forças produtivas e da tecnologia. Em ambos os casos, a sociedade socialista ou comunista era concebida essencialmente como uma distribuição mais justa dos frutos do desenvolvimento de uma sociedade industrial — aliás, amplamente conservada. A esperança de que a tecnologia e as máquinas possam resolver todos os nossos problemas sofreu golpes severos desde há quarenta anos atrás, devido ao nascimento de uma consciência ecológica e porque os efeitos paradoxais da tecnologia sobre os seres humanos se fizeram mais evidentes. (Gostaria de recordar aqui que Iván Illich, apesar das ressalvas que poderíamos fazer sobre alguns aspectos de sua obra, teve o enorme mérito de colocar em evidência esses aspectos paradoxais, e de quebrar, assim, a fé no “Progresso”).Mesmo a crença de que o progresso tecnológico leva ao progresso moral e social já não assume a forma de exaltação da siderúrgica ou das centrais nucleares “socialistas”, ou do elogio incondicional ao produtivismo; encontrou, porém, uma nova vida nas esperanças frequentemente grotescas que alguns nutrem pela informática ou pela produção “imaterial”. É o que ocorre, por exemplo, em torno do debate atual sobre a “apropriação”, ao qual foram associados, recentemente, os conceitos de “commons” e “bem comum”. É certo que toda a história (e pré-história) do capitalismo tem sido a história da privatização dos recursos que antes eram comuns, como indica o caso exemplar dos cercamentos de terra na Inglaterra, nos séculos XVII e XVIII. Segundo uma perspectiva amplamente difundida, pelo menos no meio da informática, a luta pela gratuidade e o acesso ilimitado aos bens digitais é uma batalha que tem a mesma importância histórica e seria a primeira vez, em muitos séculos, que os partidários da gratuidade e do uso comum dos recursos chegaram a vencer. Contudo, os bens digitais nunca são bens essenciais. Pode parecer simpático dispor gratuitamente da última música ou videoclipe, mas os alimentos, a calefação ou a moradia não estão disponíveis para download. Ao contrário, estão submetidos a uma escassez e a uma comercialização cada vez mais intensas. Compartilhar arquivos pode ser uma prática interessante, mas não é mais do que um epifenômeno, se comparado com a escassez de água potável no mundo ou com o aquecimento climático.A tecnofilia sob formas renovadas parece hoje menos “passada de moda” que o projeto de tomar o poder e constitui, talvez, um obstáculo maior para uma ruptura profunda com a lógica do capitalismo. Porém, propostas como a do decrescimento, o ecosocialismo, a ecologia radical ou o retorno dos movimentos camponeses em todo o mundo indicam, em sua heterogeneidade e com todos seus limites, que uma parte dos movimentos contestatários atuais não creem que o progresso técnico tenha a missão de nos levar à sociedade emancipada. E isso é também uma boa notícia…Portanto, diria que existe atualmente uma clareza maior quanto aos caminhos de uma verdadeira alternativa ao capitalismo. Esboços como os que se apresentaram no seminário realizado em Cideci aos finais de 2009 me parecem totalmente razoáveis (2). Sobretudo, é muito importante não nos limitarmos a críticar apenas a forma ultraliberal do capitalismo — e sim apontarmos nossa crítica para o capitalismo em seu conjunto, ou seja, a sociedade mercantil baseada no trabalho abstrato e no valor, no dinheiro e na mercadoria.Se estamos um pouco mais seguros de que o capitalismo está em crise, e se temos um pouco mais de clareza no que se refere às alternativas, surge a seguinte pergunta: como chegar a elas? Não quero levantar aqui considerações estratégicas ou pseudo-estratégicas, mas sim perguntar-me que tipo de mulheres ou de homens poderão realizar a transformação social necessária. Aí estão as raízes do problema. Para começar, podemos ter a impressão de que a verdadeira “regressão antropológica” provocada pelo capital, sobretudo nas últimas décadas, também alcançou quem poderia ou gostaria de se opor a ele. É uma mudança maior, à qual não sempre se dá suficiente atenção. A economia mercantil nasceu em setores muito limitados de alguns países; posteriormente, conquistou o mundo inteiro ao longo de dois séculos e meio, não só em sentido geográfico mas também no interior de cada sociedade (às vezes, chama-se esse processo de “colonização interna”). Pouco a pouco, qualquer atividade, qualquer pensamento ou sentimento, dentro das sociedades capitalistas, tomava a forma de uma mercadoria ou poderia ser satisfeito por mercadorias. Os efeitos da sociedade do consumo, e suas consequências particularmente nocivas ao introduzir-se no contexto das sociedades tradicionais consideradas “atrasadas” foram bem descritos (e aqui também poderíamos citar a Ivan Illich). Mas não está suficientemente claro o fato de que, devido a esta evolução, a sociedade capitalista já não aparece dividida simplesmente entre dominantes e dominados, explorados e exploradores, administradores e administrados, carrascos e vítimas. O capitalismo é, de maneira cada vez mais visível, uma sociedade governada pelos mecanismos anônimos e cegos, automáticos e incontroláveis, da produção de valor. Todos parecem ao mesmo tempo atores e vítimas desse mecanismo — ainda que, logicamente, os papéis assumidos e as recompensas alcançadas não sejam as mesmas.Nas revoluções clássicas, e no mais alto na Revolução Espanhola de 1936, o capitalismo era combatido por populações que o sentiam como uma exterioridade, uma imposição, uma invasão. Invocando valores, formas de viver e de concepção da vida humana totalmente diferentes. Sem tentar idealizá-las, constituíam, de certa maneira, uma alternativa qualitativa à sociedade capitalista. Mesmo que não o admitissem, esses movimentos extraíam boa parte de sua força do seu enraizamento em certos costumes pré-capitalistas: na inclinação ao dom, à generosidade, à vida em coletivo, ao desprezo pelas riquezas materiais como fim em si mesmo, e em outra percepção de tempo… Marx teve que admitir, ao final de sua vida, que o que restava da antiga propriedade coletiva de terra, em diversos povos, podia constituir uma base para uma sociedade comunista futura. Hoje, essas formas seguem existindo, sobretudo entre os povos indígenas da América Latina e deixo que vocês digam se podem formar a base de uma sociedade futura emancipada, que tenha profundas raízes no passado. Imagino que sua resposta é sim…Se isso constitui uma luz de esperança, é necessário reconhecer que significa também, por outro lado, que quase em todos os outros lugares, nos países chamados “desenvolvidos”, nas megalópoles do resto do mundo, e até nas zonas rurais mais remotas, os indivíduos sentem cada vez menos a mercadoria onipresente como uma submissão alheia às suas tradições. Talvez ela seja, ao contrário, um objeto de desejo. As reivindicações têm a ver essencialmente com as condições de sua participação neste reino, como já ocorreu com o movimento operário clássico. Seja na forma de um conflito salarial intermediado por sindicatos, ou de uma revolta nos subúrbios, a questão é quase sempre a de acesso à riqueza mercantil. É óbvio que tal acesso é geralmente necessário, para poder sobreviver na sociedade da mercadoria. Mas é igualmente certo que essas lutas não vislumbram a exigência de superar o sistema atual e criar outras maneiras de viver. De certo modo, o indivíduo que pertence às sociedades “desenvolvidas” de hoje parece estar mais distante do que nunca de uma solução emancipatória. Faltam-lhe as bases subjetivas de uma liberação; portanto, também o desejo desta, porque interiorizou o modo de vida capitalista (concorrência, êxito, rapidez etc). Em geral, seus protestos apontam o medo de ficar excluído desse modo de vida, ou de não alcançá-lo; em muitas poucas ocasiões o mero rechaço. A sociedade mercantil esgota as fontes vivas da imaginação entre as crianças, abusadas desde sua mais precoce idade por verdadeiras máquinas para descerebrá-los. Isso é ao menos tão grave como os cortes nas aposentadorias, mas não empurra milhões de pessoas a marchar nas ruas ou a assediar os produtores de videogames e de canais de televisão infantis.Os movimentos de protesto que aparecem agora no cenário não carecem de uma certa ambiguidade. Muitas vezes, as pessoas protestam simplesmente porque o sistema não cumpre com suas promessas. Dessa forma, manifestam-se pela defesa do status quo, ou ainda do status quo ante. Vejamos o movimento Occupy Wall Street e suas propagações. Ali, responsabiliza-se o setor financeiro, e Wall Street, pela crise atual. Afirma-se que a economia, e a sociedade em seu conjunto, estão dominadas pela esfera financeira. Segundo uma crítica das finanças, atualmente muito difundida, os bancos, os seguros, e os fundos especulativos não investem na produção real, mas canalizam quase todo o dinheiro disponível à especulação, que só enriquece aos investidores, destruindo empregos e criando miséria. O capital financeiro, segundo se disse, pode impor sua lei inclusive aos governos dos países mais poderosos — quando não prefere corrompê-los. Também compram aos meios de comunicação. Assim, a democracia se vai esvaziando de toda substância.Mas, quão seguros estamos de que o poder absoluto da esfera financeira, e as políticas neoliberais que as sustentam, são a causa principal das atuais turbulências? E se, ao invés, forem apenas o sintoma de uma crise muito mais profunda? Longe de ser um fator que perturba uma economia saudável em si mesma, a especulação é o que permitiu manter, durante as últimas décadas, a ficção da prosperidade capitalista. Sem as muletas oferecidas pela financeirização, a sociedade de mercado já teria caído, com seus empregos e também sua democracia. O que se anuncia por trás das crises financeiras é o esgotamento das categorias de base do capitalismo: mercadoria e dinheiro, trabalho e valor.Frente ao totalitarismo da mercadoria, não podemos nos limitar a gritar aos especuladores e outros grandes ladrões: “Devolvam nosso dinheiro!”. É necessário entender o caráter altamente destruidor do dinheiro, da mercadoria e do trabalho que os produz. Pedir ao capitalismo que se cure, para alcançar uma melhor repartição e tornar-se mais justo, é uma ilusão. As catástrofes atuais não se devem a uma conspiração da fração mais gananciosa da classe dominante; é muito mais a consequência inevitável dos problemas que são, desde sempre, parte da natureza mesma do capitalismo. Viver a crédito não é uma perversão corrigível, se não algo como um último espasmo do capitalismo..Estar conscientes de tudo isso permite evitar as armadilhas de um populismo que pretende libertar “os trabalhadores e produtores honestos” (vistos como simples vítimas do sistema) do domínio de um mal personificado pela figura do especulador. Salvar o capitalismo, atribuindo todos seus erros à atuação de uma minoria internacional de “parasitas”: isso já se viu antes na Europa.A única opção é uma verdadeira crítica da sociedade capitalista em todos os seus aspectos, e não só do neoliberalismo. O capitalismo não é unicamente o mercado: o Estado é sua outra cara (ao mesmo tempo que este está estruturalmente submetido ao capital). O Estado nunca pode ser um espaço público de decisão soberana. Inclusive em relação ao binômio Estado-Mercado, o capitalismo não é, ou já não é, uma mera coação que se impõe desde fora a sujeitos sempre refratários. Há muito tempo, o modo de vida criado pelo capitalismo é visto quase que em toda parte como altamente desejável — e seu fim possível, como uma catástrofe. Invocar a democracia (inclusive “direta” ou “radical”) não serve para nada, se os sujeitos cuja voz se pretende restituir são reflexos do sistema que os contém.É por isso que a assinatura “Somos os 99%”, que segundo se disse foi inventada por um ex-publicitário passado à anti-publicidade (Adbusters), Kalle Lasn, e que os meios consideram como “genial”, me parece delirante. Bastaria libertar-se do domínio dos 1% mais rico e mais poderoso da população para que todos os demais vivamos felizes? Entre esses 99%, quantos passam horas em frente a sua televisão, exploram seus empregados, roubam seus clientes, estacionam seu carro na calçada, comem no McDonald’s, batem em sua mulher, deixam seus filhos jogar videogames, fazem turismo sexual, gastam seu dinheiro comprando roupa de marca, consultam seus celulares a cada dois minutos — ou seja são parte integrante da sociedade capitalista? Herbert Marcuse já havia definido com muita clareza o paradoxo do verdadeiro círculo vicioso de qualquer esforço de libertação que, desde então, não deixou de se reiterar: para alcançar sua libertação, os escravos têm que ser livres.* * *Alguns poderão considerar que essas críticas são excessivas, pouco generosas ou mesmo sectárias. Argumentarão que o importante é que as pessoas por fim voltem a se mover, a protestar, que abram os olhos. Que as razões de sua rebelião irão se aprofundar; que seu grau de consciência vai elevar-se. É possível e, de fato, nossa salvação depende disso. Mas, para chegar a esse ponto, é indispensável criticar tudo o que é necessário criticar nesses movimentos, ao invés de correr atrás deles.Não é certo que qualquer oposição, qualquer protesto, é em si mesmo uma boa notícia. Com os desastres em cadeia que poderão ocorrer, com as crises econômicas, ecológicas e energéticas que vão se aprofundar, é absolutamente seguro que as pessoas vão se rebelar contra o que aconteça. Mas toda a questão é de saber como vão reagir: podem roubar as cenouras orgânicas cultivadas por um camponês ou envolver-se em uma milícia; podem organizar um inútil massacre de banqueiros o dedicar-se à caça aos imigrantes. Podem limitar-se a organizar sua própria sobrevivência no meio do desastre. Podem aderir a movimentos fascistas, que designam alguns culpados para vingança popular. Ou, ao contrário, podem lutar para a construção coletiva de uma melhor maneira de viver sobre as ruínas deixadas pelo capitalismo.Nem todo mundo irá se lançar a esta última opção; inclusive, ela continua sendo a mais difícil. Se atrair muito pouca gente, será esmagada. Por isso, o que podemos fazer hoje é essencialmente agir para que os protestos, que de qualquer modo não deixaram de surgir, tomem um bom caminho. Sem dúvidas, a presença dos traços procedentes das sociedades pré-capitalistas (em resistência anticapitalista pluri-secular) pode contribuir para a construção do bom caminho.

Notas:

(1) « O dinheiro tornou-se obsoleto? », La Jornada, 23/12/2011.

(2) Refiro-me em particular à palestra de Jérôme Baschet, «Anticapitalismo/postcapitalismo». Palestra realizada no “IIº Seminario Internacional de reflexión y análisis “Planeta tierra: movimientos antisistémicos”. CIDECI, dez-30 (20011) a jan-02 (2012).”