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JAPPE: Viagem ao coração das trevas do capitalismo

dimanche, mai 14th, 2017

“Viagem ao coração das trevas” do capitalismo*

ANSELM JAPPE **

em pdf: Viagem ao coração das trevas do capitalismo – A. Jappe
Robert Kurz, o teórico principal da “crítica do valor”, morreu em 18 de julho
de 2012 em Nuremberg (Alemanha), como consequência de um erro médico. Ele
tinha 68 anos. Essa morte prematura interrompe um trabalho imenso conduzido
há 25 anos, do qual o público francês apenas começou a ter consciência. Nascido
em 1943 em Nuremberg, onde passou toda a vida, Kurz participa da “revolta dos
estudantes” em 1968 na Alemanha e das intensas discussões no interior da “Nova
esquerda”. Depois de ter recusado o marxismo-leninismo, sem aderir aos “Verdes”,
que nesse momento passavam pela muda1 “realista” na Alemanha, funda em 1987 a
revista Marxistische Kritik, rebatizada como Krisis depois de alguns anos. A releitura
de Marx proposta por Kurz e por seus primeiros companheiros de luta (entre
os quais Roswitha Scholz, Peter Klein, Ernst Lohoff e Norbert Trenkle) não lhes
trouxe só amigos na esquerda radical. Esta última via seus dogmas serem transtornados
um após o outro, tais como a “luta de classes” e o “trabalho”, em nome
de um questionamento dos fundamentos da sociedade capitalista: valor mercantil
e trabalho abstrato, dinheiro e mercadoria, Estado e nação. Kurz, autor prolífico e
dotado de uma pluma bela e vigorosa, amiúde polêmica, atingiu um público mais
vasto com seu livro O colapso da modernização (1991), que afirmava, no exato
momento do “triunfo ocidental” consecutivo ao fim da URSS, que os dias da
sociedade mercantil mundial estavam contados e que o fim do “socialismo real”
* [N.T.] Este texto foi elaborado para o público francês. Tradução de: Robson J. F. de Oliveira.
** Professor da Academia de Belas Artes de Frosinone. E-mail: a.jappe@accademiabellearti.fr.it
1 Muda se refere ao processo de mudança de penugem pelo qual os pássaros passam.
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apenas representava uma etapa nesse processo. Articulista regular em jornais importantes,
notadamente no Brasil, conferencista notável, Kurz, mesmo assim, preferiu
ficar fora das universidades e das outras instituições do saber, conseguindo viver
graças a um trabalho proletário. Os cerca de doze livros e as centenas de artigos
que publicou se situam, grosso modo, em dois níveis: de um lado, uma elaboração
teórica de fundo, conduzida por meio de longos ensaios publicados na Krisis e na
Exit! (fundada em 2004 depois da cisão com a Krisis). De outro, um comentário
contínuo acerca do aprofundamento da crise do capitalismo e uma investigação
de seu passado – especialmente através de uma grande história do capitalismo,
O livro negro do capitalismo (1999), que foi, mesmo com suas 850 páginas, um
best-seller na Alemanha; mas também de A guerra do reordenamento mundial
(2003), O capital-mundo (2005) e de seus artigos na imprensa.
Vies et mort du capitalisme [Vidas e morte do capitalismo] reúne cerca de
trinta artigos e entrevistas centrados mais na análise da atualidade. Esse volume
é um prolongamento da coletânea de artigos lançados na França, Avis aux
Naufragés [Alerta aos náufragos] (2005). Os novos textos são datados de 2007
a 2010 e cobrem principalmente o período marcado pela crise do capitalismo que
estourou em 2008, geralmente considerada como a mais grave desde 1929. Com
efeito, sua crítica do valor é principalmente conhecida pela afirmação de que o
capitalismo está mergulhado numa crise irreversível – Kurz até foi qualificado,
em certos meios de comunicação, como “profeta do apocalipse”. Há vinte anos,
até mesmo no período de aparente vitória definitiva do capitalismo, nos anos
1990, Kurz sustenta, apoiado numa leitura rigorosa de Marx, que as categorias
de base do modo de produção capitalista estão se esgotando e atingiram seu “limite
histórico”: já não se produz “valor” o bastante. Ora, o valor (que contém o
mais-valor, logo, o lucro), expresso em dinheiro, é o único objetivo da produção
capitalista – a produção de “valores de uso” não passa de um aspecto secundário.
O valor de uma mercadoria é dado pela quantidade do “trabalho abstrato” que foi
necessário para sua fabricação, ou seja, trabalho como puro dispêndio de energia
humana, sem consideração de seu conteúdo. Quanto menos uma mercadoria contém
trabalho, menos ela tem “valor” (e é preciso que esse trabalho corresponda ao
nível de produtividade estabelecido num dado momento: dez horas de trabalho de
um tecelão artesanal podem “valer” somente uma hora, a partir do momento em
que, com uma máquina, o tecelão produz em uma hora o que antes fazia em dez
horas, logo que o regime de produção se torna industrial). Desde seus primórdios,
o capitalismo vive essa contradição: a concorrência impele cada capitalista a substituir
o trabalho vivo por máquinas, obtendo, assim, uma vantagem imediata no
mercado (ele obtém preços mais baixos). Procedendo assim, é a massa de valor
como um todo que diminui, enquanto os custos com tecnologias – que não criam
valor – aumentam. Consequentemente, a produção de valor corre a todo instante
o risco de se estrangular por conta própria e de perecer por falta de rentabilidade.
O lucro – a face visível do valor, aquela que interessa aos agentes do processo
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mercantil – só é possível se o regime de acumulação funcionar. Durante muito
tempo, a expansão interna e externa da produção de mercadorias (rumo a outras
regiões do mundo e no interior das sociedades capitalistas) pôde compensar o
valor diminuto das mercadorias singulares. Mas a partir dos anos 1970, a “terceira
revolução industrial”, a da microeletrônica, tornou o trabalho “supérfluo” em tais
proporções, que nenhum mecanismo de compensação foi mais suficiente. Desde
então, o sistema mercantil sobrevive essencialmente graças ao “capital fictício”: é
o dinheiro que não é o resultado de uma criação de valor obtida através do emprego
produtivo da força de trabalho, mas que é criado pela especulação e o crédito,
e cuja única base são os lucros futuros ainda por realizar (mas em proporções
gigantescas, portanto, impossíveis de realizar).
Segundo Kurz, essa teoria da crise inelutável está presente em Marx (mas
de uma maneira fragmentada e ambígua, o “Fragmento sobre as máquinas” nos
Grundrisse é a passagem mais significativa): a acumulação de capital não é um
modo estável que poderia continuar até o infinito e à qual somente a “luta dos
oprimidos” colocará um fim, como proclamou todo o marxismo depois de Marx.
Kurz demonstra que a “teoria do colapso”, longe de ser o objeto de um amplo
consenso entre os marxistas, como amiúde se afirma, apresentava-se muito mais
como uma “serpente marinha”. Alguns teóricos se acusavam mutuamente de se
apoiar nessa teoria do colapso, mas quase ninguém admitia que o capitalismo
pudesse se chocar contra seus limites internos antes mesmo de uma revolução
proletária. As únicas teorias que analisavam esses limites, as de Rosa Luxemburgo
(A acumulação do capital, 1912) e Henryk Grossmann (A lei da acumulação
e o colapso do sistema capitalista, 1929), ficaram, segundo Kurz, no meio do
caminho e não exerceram nenhuma influência real no movimento operário. Kurz
apresenta, assim, sua própria teoria da crise como uma novidade absoluta – que
se tornou possível pelo fato de o limite interno da produção de valor, previsto
num plano teórico por Marx, ter sido realmente atingido nos anos 1970. Desde
há alguns anos, essa crise veio à luz, depois de, durante muito tempo, ter sido
negada até mesmo pela esquerda. Mas, para Kurz, as explicações dadas atualmente
pelos “economistas de esquerda” (em verdade, simples neokeynesianos), que a
relacionam com o “subconsumo”, são demasiado insuficientes. Não há mais solução
possível dentro dos marcos da sociedade mercantil, que não cabe mais na
camisa de força do valor, a partir do momento em que as tecnologias substituíram
quase inteiramente o trabalho humano. Quando cada mercadoria só contém doses
“homeopáticas” de valor – portanto, de mais-valor, logo, de lucro –, nada muda
no que diz respeito à sua utilidade (eventual) para a vida. Mas, para o modo de
produção fundado no valor, essa situação é mortal; e numa sociedade inteiramente
submetida à economia, essa queda traz o risco de levar toda a sociedade à barbárie.
Kurz não se limita a essas generalidades, ele analisa em detalhes a evolução
da crise. Lendo as estatísticas oficiais na contracorrente, ele prova, entre outras
coisas, que a China não salvará o capitalismo; que a retomada da economia alemã
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está baseada, como todo o resto, em novas dívidas; que depois da crise de 2008
o que se fez foi apenas deslocar os “créditos podres” do setor privado para os
Estados; e que os serviços são geralmente trabalho “improdutivo” (no sentido de
que não produzem valor) e não podem substituir os postos de trabalho perdidos
na indústria etc. Ele demonstra por que nem os “programas de aquecimento da
economia” neokeynesianos, nem os mosteiros de austeridade podem ter chance de
resolver a crise, e menos do que nunca as propostas para “criação de empregos”: o
problema de fundo – que também é a razão para se ter esperança! – está exatamente
constituído pelo “fim do trabalho”. Trabalho e valor, mercadoria e dinheiro não são
dados eternos da vida humana, mas invenções históricas relativamente recentes.
Atualmente vivemos o seu fim – que não acontecerá num dia, evidentemente, mas
no espaço de algumas décadas, como Kurz precisa, ao se distinguir um pouco de
suas previsões anteriores mais “catastrofistas” a curto prazo.
A financeirização da economia e a especulação, longe de constituírem as causas
da crise, contribuíram durante muito tempo para “empurrá-la com a barriga”, e
continuam a desempenhar esse papel. Mas, assim, vamos acumulando um potencial
de crise ainda maior – e para começar, a explosão de uma inflação mundial
gigantesca, signo de uma desvalorização do dinheiro enquanto tal. Jogar a culpa
nas costas dos “banqueiros” ou localizar as causas numa espécie de conspiração
neoliberal, como fazem quase todas as críticas de esquerda, significa, segundo
Kurz, passar ao largo do problema. Eis a razão por que Kurz se mostrou, antes
de tudo, cético em relação ao potencial emancipatório dos novos movimentos de
protesto, dos quais ele estigmatiza as derivas antissemitas abertas ou implícitas.
Ele acusa com frequência a esquerda – em todas as suas variantes – de não querer,
de fato, sair do quadro capitalista, considerado por ela como eterno. Por isso, ela
propõe somente uma distribuição um pouco mais “justa” do valor e do dinheiro,
sem levar em conta o papel negativo e destrutivo dessas categorias, nem seu esgotamento
histórico. Pior ainda, os diferentes representantes da esquerda acabam
frequentemente por se propor a coadministrar o deslizamento rumo à barbárie e
à miséria. Em vez de correr atrás dos movimentos de contestação e de adulá-los,
Kurz lhes opõe constantemente a necessidade de retomar uma crítica anticapitalista
radical (em seus conteúdos, e não somente nas formas!); essa crítica deve ajudá-los
a se desvencilharem das suas insuficiências. Não basta mudar os funcionários da
administração: o capitalismo é um sistema fetichista inconsciente, regido por um
“sujeito autômato” (a expressão é de Marx) da valorização do valor. A dominação
pessoal dos proprietários jurídicos dos meios de produção sobre os vendedores
de força de trabalho não passa da tradução “sociológica”, visível na superfície,
do mecanismo autorreferencial de acúmulo do capital.
Em Dinheiro sem valor, Kurz lança mão de uma artilharia pesada da crítica
da economia política num plano essencialmente conceitual. Mesmo tendo saído
poucos dias depois da morte de seu autor, esse livro não representa nem um sumário
nem um testamento teórico, sendo concebido como a primeira parte de um vasto
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projeto de refundação da crítica da economia política. Nessa obra, Kurz trata de
quatro grandes temas ligados entre si: a diferença fundamental entre as sociedades
pré-capitalistas, protocapitalistas e capitalistas, e o papel do dinheiro no interior
delas; o nascimento do capital e do valor mercantil a partir do século XV; a lógica
interna do capital quando plenamente desenvolvido; a contradição interna e o limite
interno lógico da acumulação capitalista no decurso de sua evolução histórica até
o presente. Sempre procedendo por meio de uma polêmica cerrada com marxistas
alemães, bem pouco conhecidos na França (M. Heinrich, H.-G. Backhaus, E. Altvater,
W. F. Haug), e passando por demonstrações bastante sutis (e talvez até meio
misteriosas para os não iniciados), Kurz chega a resultados surpreendentes em sua
simplicidade. Ele não se vale de quase nenhum autor da tradição marxista, mas
somente do próprio Marx (apenas Adorno e o Lukács da História e consciência de
classe parecem lhe servir de inspiração parcial, e muito mais no que diz respeito
à abordagem dialética). Kurz não tem a pretensão de “restabelecer o que Marx
realmente disse” e apresentar-se como o único intérprete. Busca, em verdade,
desenvolver e aprofundar o lado mais radical e inovador do pensamento de Marx.
Uma parte de sua obra – o “Marx exotérico” – ficou, segundo Kurz, no terreno da
filosofia burguesa dos Iluministas e da sua crença no “progresso” e nos benefícios
do trabalho. É na outra parte – que permaneceu minoritária e fragmentada – que
o Marx “esotérico” levou a cabo uma verdadeira revolução teórica, que quase
ninguém durante mais de um século soube compreender nem continuar. Esses
diferentes aspectos da teoria de Marx estão estreitamente entrelaçados (não se trata
em absoluto de “fases” sucessivas!). O núcleo mais profundo, alicerçado na teoria
do valor, não se tornou verdadeiramente atual senão com o declínio do capitalismo.
Kurz não se propõe, portanto, a “interpretar” Marx, nem a “corrigi-lo”, mas a
retomar suas intuições mais fecundas, mesmo opondo-as a outras ideias do mestre.
Comparado a seus livros precedentes, Kurz aprofunda aqui dois temas que
antes haviam ficado um tanto implícitos. Ele afirma que aquilo que chamamos
de “valor” e “dinheiro” não existiu antes do século XIV ou XV, e que os fenômenos
que nos parecem ser o dinheiro ou o valor nas sociedades pré-capitalistas na
verdade exerciam nelas uma função fundamentalmente diferente. O capitalismo
não nasceu como uma excrescência particular numa existência atemporal – ou, de
todo modo, muito antiga – do valor e do dinheiro, mas ao mesmo tempo que estes.
Kurz faz apenas breves excursões na história “factual”, mas examina em detalhe
a estrutura das “categorias” da crítica da economia política. Para esse objetivo, é
necessário centrar fogo no “individualismo metodológico” (que ele identifica ao
“positivismo”), considerado por ele como o fundamento de todo o pensamento
burguês e que teria igualmente “infectado” quase todo o marxismo. Estaria presente
até no pensamento do próprio Marx, lado a lado com sua inspiração mais
autenticamente dialética, o que explica as cont radições no interior de sua obra.
Insistindo na diferença entre essência e fenômeno, o ser e o parecer, as categorias
escondidas e os fatos visíveis, Kurz se situa – sem dizê-lo explicitamente – no
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campo da dialética hegeliana e da diferença entre razão e intelecto. Kurz nunca
tinha se expressado de forma tão cristalina acerca de seus fundamentos metodológicos.
Não se trata, entretanto, de recomeçar, como nos anos 1970, a gargarejar a
palavra “dialética” e fazer dela um método universal. Kurz sempre tira sua energia
da polêmica contra um adversário: aqui, a incapacidade do pensamento burguês
de ir além dos fatos isolados e de seus eventuais “efeitos recíprocos”. O “todo”
não é simplesmente a soma dos elementos particulares, ele possui uma qualidade
própria; os elementos particulares não são o que parecem ser num simples golpe
de vista, como na visão empírica. Eles não revelam sua verdadeira natureza, senão
ao serem entendidos como determinados pelo todo. Todavia, Kurz não se entrega
a considerações metodológicas preliminares de maneira abstrata, mas elabora sua
abordagem, desenvolvendo seu raciocínio acerca de um objeto dado: não se trata
de analisar (como amiúde o faz o próprio Marx, pelo menos no primeiro volume de
O capital) a estrutura de um capital particular – nem mesmo de um capital “tipo
ideal” –, para em seguida conceber o “capital total”, que nada mais faria do que
reproduzir a estrutura do capital particular, como a agregação desses capitais
particulares. Da mesma forma, a mercadoria particular só é analisável como parte
da massa total de mercadorias.
Kurz começa seu livro discutindo um problema que aparentemente está ligado
mais à filologia marxiana. No primeiro capítulo de O capital, Marx analisa a
mercadoria e seu valor de uma maneira puramente lógica. A mesma cadeia lógica
conduz em seguida à existência do dinheiro; e são necessários ainda alguns passos
suplementares para se chegar ao capital. Essa sucessão lógica é também o reflexo
de uma sucessão histórica? Marx não é claro acerca disso e parece hesitar. Em
contrapartida, para o velho Engels e para os marxistas posteriores já é coisa certa:
a lógica corresponde à história. É a abordagem “lógico-histórica”. Para eles,
o valor mercantil existia muito antes do capital. Durante milhares de anos teria
havido uma “produção de mercadorias simples”, sem capital. Desde sempre, ou
quase, os homens atribuíram um “valor” a seus produtos, baseados no trabalho
que despenderam para fabricá-los. O dinheiro também teria existido há muito
tempo, mas servia apenas para facilitar as trocas. O capitalismo só teria vindo
depois que o dinheiro se acumulou até o ponto de tornar-se capital e de encontrar
diante de si uma força de trabalho “livre”.
Essa abordagem, protesta Kurz, “naturaliza” ou “ontologiza” o valor e o
trabalho, transformando-os em condições eternas de toda a vida em sociedade.
Mesmo a sociedade pós-capitalista fica reduzida a uma espécie de “aplicação
consciente da lei do valor” (esse oxímoro era um dos objetivos declarados do
“socialismo real”!) ou a formas de “mercado sem capitalismo exagerado”. Vê-se
que a leitura de Marx que Kurz propõe, por mais teórica e afastada da “práxis” que
possa parecer à primeira vista, pode implicar consequências bastante “práticas”.
Kurz retoma, às vezes corrigindo-a, “a nova leitura de Marx” proposta na
Alemanha desde 1968 por certos alunos de Adorno (H.-G. Backhaus, H. Reichelt):
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em sua análise da forma-valor, Marx examinaria as categorias mercadoria, trabalho
abstrato, valor e dinheiro como se apresentam num regime capitalista desenvolvido
“que anda com as próprias pernas”. Tratar-se-ia de uma reconstrução conceitual
que começa com o elemento mais simples, a “forma-mercadoria simples”, para
chegar à gênese “lógica” do dinheiro; a existência do capital, que aparece nessa
dedução como consequência, é na verdade já um pressuposto da análise da forma
mais simples. O valor enquanto quantidade de trabalho abstrato só existe onde
o dinheiro e o capital existem. As etapas intermediárias da construção marxiana,
como a “forma-valor desenvolvida” onde a troca das mercadorias acontece sem
a mediação do dinheiro-mercadoria, são simples etapas da demonstração – elas
não correspondem a nada de real. Sem a existência de um dinheiro-mercadoria
(os metais preciosos), os valores não podem se relacionar entre si como valores.
Portanto, uma produção de mercadorias sem dinheiro não pode existir, e a teoria
marxiana da forma-valor só pode ser válida para o capitalismo. O estatuto pouco
claro da análise da forma-valor no próprio Marx corresponde tanto a dificuldades
de exposição (os pressupostos são ao mesmo tempo as consequências, e vice-versa)
quanto à oscilação de Marx entre histórico e lógico, entre dialética e empirismo.
Logo: nada de valor sem dinheiro, nada de dinheiro sem capital. Mas replicarão
de pronto, o comércio, mercados e o dinheiro – e até mesmo a moeda
cunhada – existem há milênios; podem-se encontrar formas primitivas até na
Idade da Pedra. Para a interpretação histórico-lógica tradicional, que vê na análise
marxiana um resumo da evolução histórica real, isso não constitui um problema:
o valor sempre existiu, garante ela, da mesma maneira que o dinheiro a partir de
certa época – mas como “nichos”, ou seja, somente para a troca de excedentes.
Era, no que diz respeito à sua estrutura, o mesmo dinheiro e o mesmo valor de
hoje. O crescimento gradual dessas trocas, principalmente ao final da Idade Média,
levou à formação do capital. Kurz reprova o marxismo quando pensa assim,
quando não se distingue da ciência burguesa em sua abordagem positivista que
só considera fatos isolados: ao ver uma pessoa que dá um saco de trigo em troca
de uma pepita de ouro no antigo Egito, na Idade Média e hoje, ela conclui que
em todos esse casos se trata da mesma coisa: mercadoria por dinheiro, portanto,
comércio, logo, mercado…
Para Kurz, os fatos empíricos não demonstram nada sem uma “crítica categorial”
que as situe em seu contexto. Assim, sem definirmos o que é o dinheiro
no modo de produção capitalista (não somente suas funções práticas, mas o que
ele é), não podemos decidir se as conchas ou as peças de ouro que circulavam nas
sociedades não capitalistas correspondiam ao dinheiro no sentido moderno. É o
que Kurz nega resoluto. Historicamente, o dinheiro precede o valor, diz ele. Mas
qual dinheiro? O dinheiro no sentido capitalista nasce, diz Kurz, com a difusão
das armas de fogo, a partir do fim do século XIV. O que nos parece dinheiro nas
sociedades pré e não capitalistas tinha mais uma função sacral: nascido do sacrifício,
o dom fazia os produtos circularem no quadro de uma rede de obrigações,
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onde as pessoas investidas de um poder sacral desempenhavam um papel central.
Era uma outra forma de fetichismo. Havia evidentemente produção e circulação
de bens, mas não “economia”, “trabalho” ou “mercado”, nem mesmo em formas
rudimentares ou “ainda não desenvolvidas” (como Kurz afirma, em oposição a
Karl Polanyi, com quem ele concorda em outros aspectos). Kurz só rapidamente
entra numa análise histórica do papel do dinheiro (reservada para trabalhos futuros
que, infelizmente, não mais serão publicados) e só cita poucos autores. Entre eles,
o medievalista Jacques Le Goff, que nega a existência de um “dinheiro” na Idade
Média (e que Kurz opõe a Fernand Braudel para quem “o mercado é universal”).
O dinheiro pré-moderno não tinha “valor”: a fonte de sua importância não estava
no fato de ser a representação quantitativamente determinada de uma “substância”
social geral como é o trabalho nas sociedades modernas.
O capitalismo não constitui, aos olhos de Kurz, uma intensificação das formas
sociais antecedentes, mas uma violenta ruptura. A enorme sede de dinheiro suscitada
pela corrida aos armamentos a partir do século XV representa o big bang
da modernidade, gerando, no decurso de algumas gerações, um sistema baseado
no dinheiro (que muda totalmente de função: de símbolo, numa relação pessoal
de obrigações, ele se torna princípio de mediação social universal no posto de
representante material do trabalho abstrato), o valor-trabalho, o próprio trabalho
abstrato, o capital e, claro, o Estado (que também muda de função).
Poder-se-ia dizer que Kurz começou aqui uma grande obra, na qual quase tudo
ainda está por se fazer. É claro que sua abordagem possibilitará trocas com aqueles
que estudam o “dom” na linha de um Marcel Mauss (que, como Michel Foucault, é
objeto de algumas observações bastante interessantes, mas muito rápidas). A recusa
do “individualismo metodológico” produz seus frutos também na releitura kurziana
de Marx e na crítica da adaptação do marxismo aos critérios da economia política
burguesa (marginalista e neoliberal). Segundo Kurz, numerosas dificuldades na
teoria de Marx (como o famoso problema da transformação dos valores em preço)
desaparecem, quando se abandona a análise da mercadoria particular e do capital
particular em proveito do capital total (categoria que pode ser apreendida somente
pelo conceito, não num plano empírico), do qual as mercadorias particulares e
os capitais particulares são apenas “partes alíquotas”. Não se pode determinar o
valor de uma mercadoria particular; mas isso não significa que esse valor seja
criado só na troca (aqui, Kurz polemiza constantemente contra toda e qualquer
concepção “relativista” do valor, que ele qualifica de tipicamente pós-moderna).
O valor é “realmente” (no sentido de uma projeção fetichista) dado pelo trabalho
abstrato, que constitui sua “substância”. O que conta é a massa global (ou total)
de valor; a mercadoria particular não tem “valor” mensurável, mas consegue
realizar um “preço” na concorrência. Com efeito, uma mercadoria pode ter um
valor quase nulo (quando ela é produzida por máquinas) e obter, mesmo assim,
um preço elevado. A soma total dos valores e a soma total dos preços coincidem
necessariamente – mas não o valor e o preço da mercadoria particular.
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Esse deslocamento do eixo conceitual do capital particular para o nível do
capital total (Marx hesitava entre as duas abordagens, e Kurz, por assim dizer,
liberta-o de suas incertezas) permite efetivamente a Kurz esclarecer, de uma maneira
surpreendente, problemas como a relação entre a taxa e a massa de lucro ou
a questão do trabalho produtivo. Certamente muitos “economistas marxistas” não
estarão de acordo, mas dificilmente poderão evitar medir forças com os argumentos
de Kurz. A discussão vai muito além de uma batalha erudita entre economistas
marxistas, quando se chega à questão do “limite interno” da produção capitalista
causado pela queda da massa total de valor. Kurz dedica a isso a última parte do
livro, precisando argumentos que há muito tempo vem trazendo à baila. Em contrapartida,
o final é meio inesperado: ele se pergunta se não estamos indo de novo
rumo a um “dinheiro sem valor”. Enquanto a massa nominal de dinheiro no mundo
(incluindo as ações, os preços imobiliários, os créditos, as dívidas, os derivativos
financeiros) aumenta sem parar, aquilo do qual o dinheiro é tido por representante,
o trabalho, reduz-se a proporções cada vez menores. Assim, o dinheiro quase não
tem mais valor “real”, e uma gigantesca desvalorização do dinheiro (primeiramente
sob forma de inflação) será inevitável. Mas depois de séculos, durante os
quais o dinheiro constituiu a mediação social numa escala cada vez maior, sua
desvalorização não organizada, mas forçada, não pode provocar nada mais do que
uma gigantesca regressão social e o abandono de grande parte da atividade social,
vista como não mais “rentável”. O fim da trajetória histórica do capitalismo corre
o risco de nos empurrar a um “retorno perverso” do sacrifício, a uma barbárie nova
e pós-moderna. Com efeito, o capitalismo está anulando até mesmo os magros
“progressos” que trouxe e exigindo incessantemente dos homens “sacrifícios” para
a salvação do fetiche-dinheiro. Os cortes na saúde pública são até comparados
por Kurz aos sacrifícios humanos da história antiga, praticados para acalmar os
deuses furiosos, e ele termina afirmando que “os sacerdotes sanguinários astecas
foram humanos e doces se comparados aos burocratas-sacrificadores do fetiche
global do capital que atingiu seu limite interno histórico”.
Por que as teorias de Kurz, apesar de sua força intelectual inegável, tiveram até
aqui um impacto que se pode chamar de apenas limitado na crítica do capitalismo,
pelo menos na França? Elas são muito discutidas na internet, e Kurz obteve na
Alemanha certo sucesso de livraria, principalmente nos anos 1990. Mas, embora
a crise dos últimos anos tenha confirmado suas análises, a crítica do valor continuou
mantendo seu caráter meio “esotérico” – um discurso para “iniciados”. Por
que aqueles que Kurz chamava de “dinossauros” marxistas (até em suas versões
pós-modernas) e os economistas “alternativos” keynesianos, ligados, segundo
ele, à fase do capitalismo que acabou definitivamente de chegar ao fim, e cujos
discursos praticamente não evoluíram em quarenta anos, tornaram-se novamente
os pontos de referência daqueles que querem combater a devastação da vida pelo
capital? Kurz sempre afirmava que o capitalismo está desaparecendo ao mesmo
tempo que os seus velhos adversários, especialmente o movimento operário e os
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seus intelectuais, que tinham completamente interiorizado o trabalho e o valor, e
cujo horizonte não ia além da “integração” dos operários – e em seguida de outros
grupos “subalternos” – na sociedade mercantil. Por que a crítica do valor, que
pretende ter compreendido o caráter fundamentalmente novo da situação atual,
tem uma “penetração” tão difícil no público?
Uma primeira razão – menos importante – é a ausência de uma estratégia de
ocupação do espaço público: Kurz, assim como os outros fundadores da crítica do
valor, não são nem universitários nem midiáticos, limitando-se aos espaços que
são colocados à sua disposição. Preferem sempre o seminário de aprofundamento
com os leitores da revista à participação num grande colóquio eclético. Ficar à
margem é para eles signo de honra, mas torna lenta a difusão de suas ideias.
Além disso, a prosa de Kurz, se sabe ser mordaz e brilhante nos escritos de
“divulgação”, é por vezes, nas obras mais teóricas, difícil de ler e ainda mais de
traduzir, um pouco comparável à de Adorno. Mas, em um nível mais profundo,
são principalmente a teoria da crise e o questionamento da luta de classes que
suscitam resistências. Para Kurz, não estamos mais na presença de uma crise
“cíclica” ou de “crescimento” do capitalismo, mas vivemos o fim de uma longa
época histórica, sem saber se o futuro será melhor ou se será, antes de tudo, a
queda numa situação em que a grande maioria da humanidade não será útil, nem
mais para ser explorada, mas simplesmente “supérflua” (para a valorização do
capital). E ninguém pode controlar essa máquina em disparada! Essa perspectiva
se vê logo rechaçada, porque realmente faz medo, muito mais medo do que a
afirmação de que os mesquinhos especuladores roubam nosso dinheiro (mas que
o Estado restabelecerá a justiça para o povo!).
A crítica do valor não quer se fazer aceitar e não está a serviço das necessidades
de um público. Ela critica, com efeito, quase todas as formas de oposição passadas
e presentes que se mantêm prisioneiras da forma-valor e que até contribuíram
para seu pleno desenvolvimento. Do mesmo modo, Kurz rejeitava quase toda a
tradição marxista e entrava frequentemente em polêmica com seus representantes
contemporâneos, rompendo com os consensos e os ritos dos meios marxistas
universitários. Assim, estes lhe opuseram, o máximo de tempo possível, uma
“conspiração do silêncio”.
Mas até aqueles que reconhecem o poder heurístico da leitura da realidade capitalista
proposta por Kurz reprovam não raro a crítica do valor por ela não indicar
uma “prática” possível. “A análise é verdadeira – mas o que fazer?”, escutamos
alguém falar. Kurz é claro a esse respeito: a teoria já é uma forma de práxis, ela
contribui principalmente para desnaturalizar as categorias da vida capitalista. Mas
ele desconfia tanto dos movimentos dirigidos contra os aspectos mais superficiais
do capitalismo, como o mercado financeiro, e susceptíveis de se degenerarem
em populismo, quanto da “falsa imediatidade” dos projetos de uma “economia
alternativa”. Criar uma sociedade em que a produção e a circulação dos bens não
passam mais pela mediação autonomizada do dinheiro e do valor, mas que são
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“Viagem ao coração das trevas” do capitalismo • 123
organizadas de acordo com as necessidades – eis aí a tarefa enorme que se impõe,
depois de séculos de sociedade mercantil. Se Kurz formula a necessidade disso,
ele não explica como chegar. Mas poucas teorias se aproximaram tanto quanto a
sua do “coração das trevas” do sistema fetichista do capital.
Referências bibliográficas
KURZ, R. Avis aux Naufragés. Paris: Lignes, 2005, 192p.
______. Geld ohne Wert: Grundrisse zu einer Transformation der Kritik der politischen
Ökonomie [Dinheiro sem valor: fundamentos para uma transformação da crítica da
economia política]. Berlin: Horlemann, 2012, 419p.
______. Vies et mort du capitalisme: chroniques de la crise. Textos traduzidos por Olivier
Galtier, Wolfgang Kukulies e Luc Mercier. Paris: Lignes, 2011, 224p.
Resumo
Comentando o lançamento de uma coletânea em francês de artigos de Robert
Kurz, o texto faz um balanço de sua obra em geral, concentrando-se nas ideias
principais e nos livros mais recentemente publicados. A crise econômica que se
iniciou em 2008 foi vista por Kurz como a confirmação de seu diagnóstico de
crise irreversível do capitalismo, para a qual a esquerda, tanto a tradicional como
a dos movimentos de reação à crise, não tem proposto solução verdadeira, isto
é, que ultrapasse o marco social do capitalismo. A partir daí, o texto reconstitui
outras dimensões do pensamento de Kurz, como a discussão da teoria do valor
e a relação entre história e lógica de exposição das categorias na obra de Marx,
voltando por fim à crise atual em seu aspecto de crise do dinheiro como forma
indissociável do capital.
Palavras-chave: Robert Kurz, crise irreversível, teoria do valor, crítica da esquerda,
lógica e história.
Abstract
As a commentary of the French publication of collected articles of Robert
Kurz, the present text makes an account of his work in general, concentrating
itself on his main ideas and most recently published books. The economic crisis
initiated in 2008 was seen by Kurz as the confirmation of his diagnosis of the
inevitability of crisis in capitalism, for which the left, both the traditional and the
recent contestation movements, has no real solution, i.e. a solution that actually
overcomes capitalism in its social conditions. From this point, the text goes to other
related dimensions of Kurz’s thought, as the theory of value and the relationship
between History and the logic of conceptual exposition in the work of Marx, finally
coming back to the actual crisis in its aspect of money crisis as inseparable
from the form of capital.
Keywords: Robert Kurz, irreversible crisis, theory of value, criticism of the left,
Logics and History.
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