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JAPPE: falta um horizonte pós-capitalista

jeudi, mai 21st, 2015

Protestos: falta um horizonte pós-capitalista

Teórico próximo ao zapatismo sustenta: embora valorosas, manifestações recentes não superam, ainda, lógica da mercadoria. Parte da solução requer rever obsessão por consumir, acumular e competir

Por Anselm Jappe

| Tradução: Bruna Bernacchio

 fonte: http://outraspalavras.net/posts/protestos-falta-um-horizonte-pos-capitalista/

Há duas notícias. A boa é que nosso velho inimigo, o capitalismo, parece encontrar-se em uma crise gravíssima. A má notícia é que, neste momento, não se vê nenhuma forma de emancipação social que esteja realmente a nosso alcance; além disso, nada pode garantir que o possível fim do capitalismo resulte em uma sociedade melhor. É como constatar que a prisão em que estamos há muito incendiou-se, mas as fechaduras das portas continuam bloqueadas…Gostaria de iniciar com um recordo pessoal. Visitei o México pela primeira vez em 1982. TInha 19 anos e uma mochila nas costas. Vivia na Alemanha. Naqueles tempos, falava-se do “Terceiro Mundo” e sua miséria; mas outra coisa era descobrí-lo pessoalmente e ver as crianças descalças pedindo esmola na rua. Na Cidade do México, hospedava-me em uma espécie de hotel da juventude, gestionado por uns suiços. Uma noite, ao regressar, muito afetado pela visão da pobreza na cidade, comecei a ler um exemplar da revista alemã Der Spiegel, que estava por ali. Demorei-me em uma grande reportagem sobre o estado da sociedade alemã, que naquele momento, parecia encontrar-se em seu apogeu. A descrição era a mais desoladora: só se falava em depressões, dependências farmacêuticas, famílias desestruturadas, jovens desmotivados e deterioração social. Eu me sentia mergulhado num abismo. Já tinha uma certa experiência da crítica teórica e prática do capitalismo, do qual pensava todo o mal possível. Mas nunca antes havia sentido com tanta força o mundo em que vivemos, um mundo onde alguns morrem de fome, e os outros — os que supostamente estão no lado melhor — são tão infelizes que se entopem de medicamentos ou se matam. Sentia que os pobres são infelizes e os “ricos” também, de forma que o capitalismo é um sofrimento para todos. Entendi que esse sistema, em ultima instância, não é proveitoso para ninguém, que “desenvolver” os pobres para que vivam como os ricos não serviria de nada, e que a sociedade da mercadoria é inimiga da espécie humana.Ao mesmo tempo, em 1982, esse sistema parecia forte, muito forte. Era deprimente considerar a correlação de forças entre quem, de uma forma ou de outra, queria mudar esse sistema; e o sistema mesmo, com o consenso que, apesar de tudo, conseguia manter e com os benefícios materiais que ainda podia distribuir.Hoje, a situação parece ter mudado radicalmente. Nesses dias, na Europa, as instâncias políticas e a mídia descrevem roteiros de possíveis catástrofes, do tipo argentino. Não é necessário comentar mais o fato de que, em todas as partes, percebe-se uma crise do capitalismo muito grave, permanente pelo menos desde 2008. Talvez alguns de vocês já tenham lido a tradução de um artigo meu (1), onde trato de imaginar o que passaria se o dinheiro, todo o dinheiro, começasse a perder seu papel, depois de um colapso financeiro e econômico. O jornal francês mais importante, Le Monde, publicou-o e muitos leitores comentaram. Penso que, há poucos anos, teriam me classificado na mesma categoria que aqueles que veem ovnis…Uma primeira observação importante é que essa crise do capitalismo não se deve às ações de seus adversários. Todos os movimentos revolucionários modernos e quase toda a crítica social sempre imaginaram que o capitalismo seria vencido por forças organizadas, decididas a aboli-lo e a substituí-lo por algo melhor. A dificuldade era vencer o imenso poder do capitalismo, que se instalava tanto nas armas de seus exércitos como no que havia metido nas cabeças das pessoas; mas se isso fosse alcançado, a solução estava ao alcance da mão. De fato, a existência de um projeto de sociedade alternativa era o que, em ultima instância, provocava as revoluções.O que vemos hoje, é a derrubada de um sistema, sua auto-destruição, seu esgotamento, seu colapso. Finalmente, topou com seus limites, com os limites da valorização do valor, que estava em seu núcleo desde o princípio. O capitalismo é essencialmente uma produção de valor, que se representa em dinheiro. Na produção capitalista, só o que permite conseguir dinheiro importa. Isso não se deve principalmente à ganância de uns capitalistas malvados. Deriva do fato de que só o trabalho pode atribuir “valor” às mercadorias. Isso implica que as tecnologias não adicionam um valor complementar às mercadorias. Quanto mais as máquinas e novas tecnologias são utilizadas, menos valor há em cada mercadoria. Mas a competição empurra incessantemente os donos do capital a utilizar tecnologias que substituam o trabalho. Dessa maneira, o capitalismo destrói suas próprias bases, e o faz desde o início. Só o aumento contínuo da produção de mercadorias pode compensar o fato de que cada mercadoria tem cada vez menos “valor”, e portanto também menos mais-valia, conversível em dinheiro. São conhecidas as consequências ecológicas e sociais dessa louca corrida em direção a uma maior produtividade. Mas é também importante sublinhar que a queda da massa de valor não pode ser compensada eternamente e provoca, por fim, uma crise da acumulação do próprio capital. Nas últimas décadas, uma acumulação deficiente tem sido substituída pela simulação através da finanças e do crédito. Agora, essa forma de vida “baixo perfusão” do capital encontrou também seus limites e a crise do mecanismo de valorização parece irreversível.Essa crise não é, como alguns querem acreditar, uma armadilha dos capitalistas, para impor medidas ainda mais desfavoráveis aos trabalhadores e aos que se utilizam de serviços e políticas públicas; para desmantelar as estruturas públicas e aumentar os lucros dos bancos e dos super-ricos. É certo que alguns atores econômicos conseguem tirar grande benefício da crise, mas isso só significa que um bolo cada vez menor se divide em porções cada vez maiores, entre um número mais reduzido de competidores. É evidente que essa crise está fora de controle e ameaça a sobrevivência do sistema capitalista enquanto tal.Com certeza, não significa necessariamente que estejamos assistindo ao último ato do drama iniciado há 250 anos. Que o capitalismo tenha alcançado seus limites – em termos econômicos, ecológicos, energéticos – não significa que vai cair de um dia pra outro, ainda que isso não esteja de todo excluído. É mais realista prever um longo período de declínio da sociedade capitalista, com algumas poucas ilhas por todas as partes, às vezes protegidos por muros, onde a reprodução capitalista ainda funcionaria, e com amplas regiões de terras queimadas, onde os sujeitos pós-mercantis buscariam sobreviver de qualquer forma possível. O traficante de drogas e os que reviram as lixeiras são dois dos rostos mais emblemáticos de um mundo que reduz alguns seres humanos à condição de resto, de gente cujo maior problema já não é ser explorado se não de simplesmente tornar-se supérfula do ponto de vista da economia mercantil, sem ter a possibilidade de regressar às formas pré-capitalistas de uma economia de subsistência, baseada na agricultura e no artesanato. Onde o capitalismo e seu ciclo de produção e consumo deixar de funcionar, não será possível regressar às antigas formas sociais. O risco é entrarmos em novas configurações que combinem os piores elementos das formações sociais anteriores. E não há dúvida de que quem for viver nos setores da sociedade que ainda funcionem vai defender seus privilégios com tudo, armas e técnicas de vigilância cada vez mais aperfeiçoadas. Como uma besta agonizante, o capitalismo pode ainda causar terríveis estragos, não só desencadeando guerras e violências de todo o tipo, mas também provocando danos ecológicos irreversíveis, com a disseminação de organismos geneticamente modificados (OGM), de nanopartículas etc. Então, a péssima saúde do capitalismo é apenas uma condição necessária para o advento de uma sociedade liberada; de nenhuma maneira é uma condição suficiente, em termos filosóficos. O fato de que a prisão está em chamas não nos serve de nada se a porta não abre, ou se abre para um precipício.Implica uma grande diferença com o passado: durante mais de um século, a tarefa dos revolucionários foi encontrar formas de acabar com o monstro. Se chegasse a isso, era inevitável que o socialismo, a sociedade livre – ou qualquer que fosse seu nome – adviria. Hoje, a tarefa dos que foram os revolucionários apresenta-se de maneira invertida: frente aos desastres provocados pelas revoluções permanentes operadas pelo capital, trata-se de “conservar” algumas conquistas essenciais da humanidade e tentar levá-las até uma forma de organização social superior.Agora já não é necessário demonstrar a fragilidade do capitalismo, cujo potencial histórico de evolução se esgotou – e isso é uma boa notícia. Outra boa notícia é que tampouco se deve conceber a alternativa ao capitalismo sob formas que o continuam. Diria que há, hoje, muito mais clareza no que se refere aos objetivos da luta do que há quarenta anos. Felizmente, duas maneiras – muitas vezes entrelaçadas – de conceber o pós-capitalismo, que foram dominantes durante todo o século XX, perderam muita credibilidade, ainda que estejam longe de desaparecer. Por um lado, o projeto de superar o mercado com o Estado, a centralização, a modernização, e de confiar a luta para alcançar esse objetivo a organizações de massas dirigidas por funcionários. Colocar todos para trabalhar era a meta principal dessas formas de “socialismo real”. É preciso recordar que, tanto para Lênin quanto para Gramsci, a fábrica de Henry Ford era o modelo para a produção comunista. Claro que a opção estatal continua tendo seus adeptos, seja sob a forma do entusiasmo em relação a Chávez, ou com o planejamento de mais intervencionismo estatal na Europa. Mas no geral, o leninismo, em todas as suas variantes, teve que reduzir sua influência sobre os movimentos de contestação nos últimos trinta anos atrás, e isso é muito positivo.A outra maneira de conceber a superação do capitalismo sob uma forma que mais parece ser sua intensificação e modernização baseia-se em uma confiança cega nos benefícios das forças produtivas e da tecnologia. Em ambos os casos, a sociedade socialista ou comunista era concebida essencialmente como uma distribuição mais justa dos frutos do desenvolvimento de uma sociedade industrial — aliás, amplamente conservada. A esperança de que a tecnologia e as máquinas possam resolver todos os nossos problemas sofreu golpes severos desde há quarenta anos atrás, devido ao nascimento de uma consciência ecológica e porque os efeitos paradoxais da tecnologia sobre os seres humanos se fizeram mais evidentes. (Gostaria de recordar aqui que Iván Illich, apesar das ressalvas que poderíamos fazer sobre alguns aspectos de sua obra, teve o enorme mérito de colocar em evidência esses aspectos paradoxais, e de quebrar, assim, a fé no “Progresso”).Mesmo a crença de que o progresso tecnológico leva ao progresso moral e social já não assume a forma de exaltação da siderúrgica ou das centrais nucleares “socialistas”, ou do elogio incondicional ao produtivismo; encontrou, porém, uma nova vida nas esperanças frequentemente grotescas que alguns nutrem pela informática ou pela produção “imaterial”. É o que ocorre, por exemplo, em torno do debate atual sobre a “apropriação”, ao qual foram associados, recentemente, os conceitos de “commons” e “bem comum”. É certo que toda a história (e pré-história) do capitalismo tem sido a história da privatização dos recursos que antes eram comuns, como indica o caso exemplar dos cercamentos de terra na Inglaterra, nos séculos XVII e XVIII. Segundo uma perspectiva amplamente difundida, pelo menos no meio da informática, a luta pela gratuidade e o acesso ilimitado aos bens digitais é uma batalha que tem a mesma importância histórica e seria a primeira vez, em muitos séculos, que os partidários da gratuidade e do uso comum dos recursos chegaram a vencer. Contudo, os bens digitais nunca são bens essenciais. Pode parecer simpático dispor gratuitamente da última música ou videoclipe, mas os alimentos, a calefação ou a moradia não estão disponíveis para download. Ao contrário, estão submetidos a uma escassez e a uma comercialização cada vez mais intensas. Compartilhar arquivos pode ser uma prática interessante, mas não é mais do que um epifenômeno, se comparado com a escassez de água potável no mundo ou com o aquecimento climático.A tecnofilia sob formas renovadas parece hoje menos “passada de moda” que o projeto de tomar o poder e constitui, talvez, um obstáculo maior para uma ruptura profunda com a lógica do capitalismo. Porém, propostas como a do decrescimento, o ecosocialismo, a ecologia radical ou o retorno dos movimentos camponeses em todo o mundo indicam, em sua heterogeneidade e com todos seus limites, que uma parte dos movimentos contestatários atuais não creem que o progresso técnico tenha a missão de nos levar à sociedade emancipada. E isso é também uma boa notícia…Portanto, diria que existe atualmente uma clareza maior quanto aos caminhos de uma verdadeira alternativa ao capitalismo. Esboços como os que se apresentaram no seminário realizado em Cideci aos finais de 2009 me parecem totalmente razoáveis (2). Sobretudo, é muito importante não nos limitarmos a críticar apenas a forma ultraliberal do capitalismo — e sim apontarmos nossa crítica para o capitalismo em seu conjunto, ou seja, a sociedade mercantil baseada no trabalho abstrato e no valor, no dinheiro e na mercadoria.Se estamos um pouco mais seguros de que o capitalismo está em crise, e se temos um pouco mais de clareza no que se refere às alternativas, surge a seguinte pergunta: como chegar a elas? Não quero levantar aqui considerações estratégicas ou pseudo-estratégicas, mas sim perguntar-me que tipo de mulheres ou de homens poderão realizar a transformação social necessária. Aí estão as raízes do problema. Para começar, podemos ter a impressão de que a verdadeira “regressão antropológica” provocada pelo capital, sobretudo nas últimas décadas, também alcançou quem poderia ou gostaria de se opor a ele. É uma mudança maior, à qual não sempre se dá suficiente atenção. A economia mercantil nasceu em setores muito limitados de alguns países; posteriormente, conquistou o mundo inteiro ao longo de dois séculos e meio, não só em sentido geográfico mas também no interior de cada sociedade (às vezes, chama-se esse processo de “colonização interna”). Pouco a pouco, qualquer atividade, qualquer pensamento ou sentimento, dentro das sociedades capitalistas, tomava a forma de uma mercadoria ou poderia ser satisfeito por mercadorias. Os efeitos da sociedade do consumo, e suas consequências particularmente nocivas ao introduzir-se no contexto das sociedades tradicionais consideradas “atrasadas” foram bem descritos (e aqui também poderíamos citar a Ivan Illich). Mas não está suficientemente claro o fato de que, devido a esta evolução, a sociedade capitalista já não aparece dividida simplesmente entre dominantes e dominados, explorados e exploradores, administradores e administrados, carrascos e vítimas. O capitalismo é, de maneira cada vez mais visível, uma sociedade governada pelos mecanismos anônimos e cegos, automáticos e incontroláveis, da produção de valor. Todos parecem ao mesmo tempo atores e vítimas desse mecanismo — ainda que, logicamente, os papéis assumidos e as recompensas alcançadas não sejam as mesmas.Nas revoluções clássicas, e no mais alto na Revolução Espanhola de 1936, o capitalismo era combatido por populações que o sentiam como uma exterioridade, uma imposição, uma invasão. Invocando valores, formas de viver e de concepção da vida humana totalmente diferentes. Sem tentar idealizá-las, constituíam, de certa maneira, uma alternativa qualitativa à sociedade capitalista. Mesmo que não o admitissem, esses movimentos extraíam boa parte de sua força do seu enraizamento em certos costumes pré-capitalistas: na inclinação ao dom, à generosidade, à vida em coletivo, ao desprezo pelas riquezas materiais como fim em si mesmo, e em outra percepção de tempo… Marx teve que admitir, ao final de sua vida, que o que restava da antiga propriedade coletiva de terra, em diversos povos, podia constituir uma base para uma sociedade comunista futura. Hoje, essas formas seguem existindo, sobretudo entre os povos indígenas da América Latina e deixo que vocês digam se podem formar a base de uma sociedade futura emancipada, que tenha profundas raízes no passado. Imagino que sua resposta é sim…Se isso constitui uma luz de esperança, é necessário reconhecer que significa também, por outro lado, que quase em todos os outros lugares, nos países chamados “desenvolvidos”, nas megalópoles do resto do mundo, e até nas zonas rurais mais remotas, os indivíduos sentem cada vez menos a mercadoria onipresente como uma submissão alheia às suas tradições. Talvez ela seja, ao contrário, um objeto de desejo. As reivindicações têm a ver essencialmente com as condições de sua participação neste reino, como já ocorreu com o movimento operário clássico. Seja na forma de um conflito salarial intermediado por sindicatos, ou de uma revolta nos subúrbios, a questão é quase sempre a de acesso à riqueza mercantil. É óbvio que tal acesso é geralmente necessário, para poder sobreviver na sociedade da mercadoria. Mas é igualmente certo que essas lutas não vislumbram a exigência de superar o sistema atual e criar outras maneiras de viver. De certo modo, o indivíduo que pertence às sociedades “desenvolvidas” de hoje parece estar mais distante do que nunca de uma solução emancipatória. Faltam-lhe as bases subjetivas de uma liberação; portanto, também o desejo desta, porque interiorizou o modo de vida capitalista (concorrência, êxito, rapidez etc). Em geral, seus protestos apontam o medo de ficar excluído desse modo de vida, ou de não alcançá-lo; em muitas poucas ocasiões o mero rechaço. A sociedade mercantil esgota as fontes vivas da imaginação entre as crianças, abusadas desde sua mais precoce idade por verdadeiras máquinas para descerebrá-los. Isso é ao menos tão grave como os cortes nas aposentadorias, mas não empurra milhões de pessoas a marchar nas ruas ou a assediar os produtores de videogames e de canais de televisão infantis.Os movimentos de protesto que aparecem agora no cenário não carecem de uma certa ambiguidade. Muitas vezes, as pessoas protestam simplesmente porque o sistema não cumpre com suas promessas. Dessa forma, manifestam-se pela defesa do status quo, ou ainda do status quo ante. Vejamos o movimento Occupy Wall Street e suas propagações. Ali, responsabiliza-se o setor financeiro, e Wall Street, pela crise atual. Afirma-se que a economia, e a sociedade em seu conjunto, estão dominadas pela esfera financeira. Segundo uma crítica das finanças, atualmente muito difundida, os bancos, os seguros, e os fundos especulativos não investem na produção real, mas canalizam quase todo o dinheiro disponível à especulação, que só enriquece aos investidores, destruindo empregos e criando miséria. O capital financeiro, segundo se disse, pode impor sua lei inclusive aos governos dos países mais poderosos — quando não prefere corrompê-los. Também compram aos meios de comunicação. Assim, a democracia se vai esvaziando de toda substância.Mas, quão seguros estamos de que o poder absoluto da esfera financeira, e as políticas neoliberais que as sustentam, são a causa principal das atuais turbulências? E se, ao invés, forem apenas o sintoma de uma crise muito mais profunda? Longe de ser um fator que perturba uma economia saudável em si mesma, a especulação é o que permitiu manter, durante as últimas décadas, a ficção da prosperidade capitalista. Sem as muletas oferecidas pela financeirização, a sociedade de mercado já teria caído, com seus empregos e também sua democracia. O que se anuncia por trás das crises financeiras é o esgotamento das categorias de base do capitalismo: mercadoria e dinheiro, trabalho e valor.Frente ao totalitarismo da mercadoria, não podemos nos limitar a gritar aos especuladores e outros grandes ladrões: “Devolvam nosso dinheiro!”. É necessário entender o caráter altamente destruidor do dinheiro, da mercadoria e do trabalho que os produz. Pedir ao capitalismo que se cure, para alcançar uma melhor repartição e tornar-se mais justo, é uma ilusão. As catástrofes atuais não se devem a uma conspiração da fração mais gananciosa da classe dominante; é muito mais a consequência inevitável dos problemas que são, desde sempre, parte da natureza mesma do capitalismo. Viver a crédito não é uma perversão corrigível, se não algo como um último espasmo do capitalismo..Estar conscientes de tudo isso permite evitar as armadilhas de um populismo que pretende libertar “os trabalhadores e produtores honestos” (vistos como simples vítimas do sistema) do domínio de um mal personificado pela figura do especulador. Salvar o capitalismo, atribuindo todos seus erros à atuação de uma minoria internacional de “parasitas”: isso já se viu antes na Europa.A única opção é uma verdadeira crítica da sociedade capitalista em todos os seus aspectos, e não só do neoliberalismo. O capitalismo não é unicamente o mercado: o Estado é sua outra cara (ao mesmo tempo que este está estruturalmente submetido ao capital). O Estado nunca pode ser um espaço público de decisão soberana. Inclusive em relação ao binômio Estado-Mercado, o capitalismo não é, ou já não é, uma mera coação que se impõe desde fora a sujeitos sempre refratários. Há muito tempo, o modo de vida criado pelo capitalismo é visto quase que em toda parte como altamente desejável — e seu fim possível, como uma catástrofe. Invocar a democracia (inclusive “direta” ou “radical”) não serve para nada, se os sujeitos cuja voz se pretende restituir são reflexos do sistema que os contém.É por isso que a assinatura “Somos os 99%”, que segundo se disse foi inventada por um ex-publicitário passado à anti-publicidade (Adbusters), Kalle Lasn, e que os meios consideram como “genial”, me parece delirante. Bastaria libertar-se do domínio dos 1% mais rico e mais poderoso da população para que todos os demais vivamos felizes? Entre esses 99%, quantos passam horas em frente a sua televisão, exploram seus empregados, roubam seus clientes, estacionam seu carro na calçada, comem no McDonald’s, batem em sua mulher, deixam seus filhos jogar videogames, fazem turismo sexual, gastam seu dinheiro comprando roupa de marca, consultam seus celulares a cada dois minutos — ou seja são parte integrante da sociedade capitalista? Herbert Marcuse já havia definido com muita clareza o paradoxo do verdadeiro círculo vicioso de qualquer esforço de libertação que, desde então, não deixou de se reiterar: para alcançar sua libertação, os escravos têm que ser livres.* * *Alguns poderão considerar que essas críticas são excessivas, pouco generosas ou mesmo sectárias. Argumentarão que o importante é que as pessoas por fim voltem a se mover, a protestar, que abram os olhos. Que as razões de sua rebelião irão se aprofundar; que seu grau de consciência vai elevar-se. É possível e, de fato, nossa salvação depende disso. Mas, para chegar a esse ponto, é indispensável criticar tudo o que é necessário criticar nesses movimentos, ao invés de correr atrás deles.Não é certo que qualquer oposição, qualquer protesto, é em si mesmo uma boa notícia. Com os desastres em cadeia que poderão ocorrer, com as crises econômicas, ecológicas e energéticas que vão se aprofundar, é absolutamente seguro que as pessoas vão se rebelar contra o que aconteça. Mas toda a questão é de saber como vão reagir: podem roubar as cenouras orgânicas cultivadas por um camponês ou envolver-se em uma milícia; podem organizar um inútil massacre de banqueiros o dedicar-se à caça aos imigrantes. Podem limitar-se a organizar sua própria sobrevivência no meio do desastre. Podem aderir a movimentos fascistas, que designam alguns culpados para vingança popular. Ou, ao contrário, podem lutar para a construção coletiva de uma melhor maneira de viver sobre as ruínas deixadas pelo capitalismo.Nem todo mundo irá se lançar a esta última opção; inclusive, ela continua sendo a mais difícil. Se atrair muito pouca gente, será esmagada. Por isso, o que podemos fazer hoje é essencialmente agir para que os protestos, que de qualquer modo não deixaram de surgir, tomem um bom caminho. Sem dúvidas, a presença dos traços procedentes das sociedades pré-capitalistas (em resistência anticapitalista pluri-secular) pode contribuir para a construção do bom caminho.

Notas:

(1) « O dinheiro tornou-se obsoleto? », La Jornada, 23/12/2011.

(2) Refiro-me em particular à palestra de Jérôme Baschet, «Anticapitalismo/postcapitalismo». Palestra realizada no “IIº Seminario Internacional de reflexión y análisis “Planeta tierra: movimientos antisistémicos”. CIDECI, dez-30 (20011) a jan-02 (2012).”

BRUM: Como se fabricam crianças loucas

dimanche, février 22nd, 2015

Os manicômios não são passado, são presente. Uma pesquisa realizada no hospital psiquiátrico Pinel, em São Paulo, mostra que, mesmo depois das novas diretrizes da política de saúde mental no Brasil, crianças e adolescentes continuaram a ser trancados por longos períodos, muitas vezes sem diagnóstico que justificasse a internação, a mando da Justiça. Conheça a história de Raquel: 1807 dias de confinamento. E de José: 1271 dias de segregação. Ambos tiveram sua loucura fabricada na primeira década deste século

Em uma noite de novembro de 2007, a psicóloga Flávia Blikstein escutou de uma menina duas perguntas. E descobriu que não tinha respostas. Flávia trabalhava num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) infantil, em São Paulo, e encontrava-se na ambulância para levar a garota para sua primeira internação psiquiátrica. Maria, como aqui será chamada, tinha 14 anos. Era negra, alta e magra. Falava pouco, frases curtas. Gostava de brincar de boneca e de desenhar. Às vezes pintava as unhas, arrumava o cabelo, anunciando a adolescência. Maria se molhava o tempo todo, em pequenos rituais. Abria a torneira, fazia uma conchinha com as mãos e molhava os pés, as pernas, os braços. Fazia isso em qualquer lugar, causando vergonha à mãe. Talvez Maria estivesse esculpindo com a água os limites do próprio corpo. Quando fez a primeira pergunta à Flávia, ela ainda tinha as pontas dos dedos úmidas, e o seu olhar também era molhado:

– Por que eu vou ficar aqui?

Flávia descobriu que não tinha resposta.

Maria fez então a segunda pergunta:

– Quem tá aí? Quem vai dormir no quarto comigo?

Flávia descobriu que não tinha resposta também para essa. Não tinha resposta porque, ao contrário do que costuma acontecer quando crianças e adolescentes nos mostram a face do abismo, ela tinha escutado as perguntas. Escutado mesmo. A “menina louca” tinha indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava a dar o primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica. Talvez Maria intuísse que esse passo poderia ser longo. Talvez Maria adivinhasse que os dentes do sistema estavam à sua espera, logo ali.

Flávia abraçou Maria. E pediu desculpas por não saber responder. Maria entrou, carregando olhos molhados e pontos de interrogação.

A “menina louca” tinha indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava a dar o primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica

O que Maria perguntou à Flávia, perguntou a todos nós: por que, no século 21, crianças e adolescentes brasileiros, a maioria filhos de famílias pobres, continuam a ter suas vidas mastigadas num hospital psiquiátrico. A “criança louca” fez aos normais a pergunta mais lúcida: por que a condenavam a uma existência de manicômio. A habitar um mundo de dor, vagando entre paredes, desvestindo a si mesma para vestir um uniforme, sem direito ao desejo. Por que lhe negavam a humanidade tão cedo.

Flávia não pôde esquecer as perguntas, menos ainda a sua falta de respostas. Dedicou-se a buscá-las. Encontrou-as no arquivo do Núcleo da Infância e da Adolescência (NIA) do Centro de Atenção Integrada em Saúde Mental (CAISM) Philippe Pinel. O Pinel é uma das instituições de referência para internação de crianças e adolescentes com problemas mentais no estado de São Paulo. Flávia sabia que aquilo que se costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então, botou-o para falar. Fechou-se na pequena sala bordada de estantes durante todos os sábados de um ano inteiro. Analisou 451 casos, correspondentes a 611 internações ocorridas entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009. Destes, 79% das crianças e adolescentes haviam sido internados apenas uma vez. Os 21% restantes tiveram de duas a sete reinternações. Alguns casos, que continuaram a voltar ao Pinel, ela acompanhou também nos anos de 2010 e 2011. Flávia queria saber qual era o percurso que levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como primeira providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado.

O arquivo do Pinel ficava logo abaixo da enfermaria das crianças e adolescentes. Enquanto pesquisava, Flávia podia ouvir os gritos. Percebeu, porém, que mais do que gritos havia um silêncio longo. Um silêncio, nas suas palavras, “estranho e profundo, um silêncio que não imaginamos num lugar cheio de crianças e adolescentes”. Dentro do arquivo, não. Os prontuários contavam histórias. Ainda que a voz de meninos e meninas ressoasse mais nas ausências, nas entrelinhas, os prontuários diziam de infâncias aniquiladas numa vida de manicômio. E mostravam por que caminhos a fabricação de crianças loucas é uma verdade profunda do Brasil. Flávia chamava o arquivo de “sala das almas”. E as almas falavam.

Duas crianças, que se transformaram em adolescentes no hospital psiquiátrico, contaram histórias que poderiam ilustrar livros escabrosos sobre os manicômios do passado, mas que se passaram na primeira década desse século. Aqui, elas serão chamadas de José e de Raquel. José permaneceu confinado por 1271 dias – ou três anos e cinco meses. Raquel, por 1807 dias. Ficou trancada dos 11 aos 16 anos – e de lá foi transferida para outra instituição psiquiátrica. José e Raquel estavam segregados no Pinel, a mando da Justiça, sob reiterados protestos da equipe técnica. Foram depositados como coisas no Pinel porque ainda é este o destino dado a crianças como eles no Brasil.

Por quê?

Flávia sabia que aquilo que se costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então, botou-o para falar. Analisou 451 casos, correspondentes a 611 internações ocorridas entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009

É preciso prestar muita atenção às respostas que Flávia encontrou. Sua escuta de três mil horas dentro do arquivo transformou-se numa dissertação de mestrado em psicologia social na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Somando-se a trabalhos fundamentais de outros pesquisadores do tema, tanto em São Paulo como em vários estados do Brasil, a investigação mostra por que os manicômios persistem apesar das diretrizes da política de saúde mental e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A Lei nº 10.216, de 2001, orientada pela reforma psiquiátrica, prioriza o atendimento em rede, em serviços inseridos na comunidade, perto da família, e determina que a internação só pode ocorrer depois de esgotados todos os recursos extra-hospitalares. Não é o que acontece em casos demais.

“Medievais”, “desumanos” e “criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir os hospícios desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final dos anos 1970 e conquistou avanços significativos nesse século. A pesquisa mostra, porém, que mesmo instituições e profissionais que tentam fazer diferente são seguidamente vencidos pelas engrenagens e pela escassez de serviços públicos de base. Na prática, ainda hoje, é de manicômio e de vida manicomial que se trata em uma parte significativa dos casos, uma realidade só possível pelo descaso quase absoluto da sociedade com o destino dessas crianças, em geral filhas de famílias pobres. Ao fazer o arquivo morto falar, Flávia constrói respostas que precisam ser escutadas se quisermos, de fato, estancar o crime de fabricar crianças loucas – e, muitas vezes, também o de conseguir enlouquecê-las.

Raquel nasceu em 1994. A mãe estava presa por tráfico de drogas, não porque era chefe de uma organização criminosa, mas porque vendia uma pequena quantidade para sustentar seu próprio vício. Esse destino é comum nos presídios do país, é também gerador de órfãos de mães vivas. Pobre demais para dar conta dela, a avó colocou Raquel num abrigo aos cinco anos. A menina é de imediato descrita como “agressiva”. E, por esse motivo, é afastada das outras crianças. Passa a morar com o que se chama de “mãe social”, isolada numa casa nos fundos do abrigo. A escolha, como mostra Flávia, evidencia que, desde sempre, a resposta à agressividade de Raquel é a exclusão. Obviamente, também não deu certo. De abrigo em abrigo, Raquel virou aquela que “não dava certo” em abrigo nenhum.

Talvez valesse a pena perguntar se a agressividade, ao se olhar para o contexto e as circunstâncias, não era o principal traço de sanidade de Raquel. Mas o direito à história é o primeiro a ser arrancado das “crianças loucas”. Ela já tinha quase tantos rótulos quanto anos de vida: filha de presidiária, abandonada, agressiva, não dá certo… Raquel só era vista por estigmas e fragmentos.

Ela queria saber qual era o percurso que levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como primeira providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado

Negra como Maria, ela foi internada pela primeira vez em 2005, aos 11 anos. Entrou no sistema por ordem da Justiça. Antes de seguirmos o seu destino, é crucial entender as duas formas de entrada nas instituições psiquiátricas, identificadas pela pesquisa. Nelas se encontra uma das chaves para compreender a fabricação das crianças loucas no Brasil atual. Assim como os caminhos pelos quais é mantida viva a função histórica dos manicômios como lugar de segregação daqueles que são decodificados como perigosos para a ordem social, ainda que sejam apenas pobres e abandonados.

Em pouco mais da metade dos casos – 55% – o pedido de internação psiquiátrica foi feito por familiares e por diferentes serviços da rede de saúde. Nos outros 45%, crianças e adolescentes foram internados por ordem judicial. Estes são os dois caminhos de entrada nos hospitais psiquiátricos. A pesquisa mostrou, porém, algumas diferenças fundamentais para compreender o problema: no período pesquisado, a Justiça internou mais cedo, por mais tempo e mais vezes. A maioria dos casos era de adolescentes, mas as crianças respondiam por 20% das internações por ordem judicial. Pela via da rede de saúde, menos de 6% eram crianças. Por ordem judicial, o tempo médio de internação era quase o dobro (55 dias contra 30). A Justiça também foi responsável por 92% das internações com duração maior do que 150 dias. Entre os 14 casos que sofreram internações de quatro a sete vezes, 12 tinham sido confinados por ordem judicial.

Entre eles, Raquel. Dos 11 aos 16 anos, ela foi internada seis vezes no Pinel. A queixa da primeira vez: “Paciente institucionalizada há oito meses (nome de outro hospital), com transtorno de comportamento, heteroagressiva (agressividade dirigida a terceiros), em tratamento ambulatorial pouco resolutivo”. Depois de seis dias, o Pinel deu alta e a menina foi encaminhada a um abrigo. Oito dias mais tarde, ela foi novamente internada por ordem judicial: “Paciente portadora de transtorno de conduta grave. Uma vez no abrigo, voltou a ficar agressiva. Crítica seriamente comprometida, ameaçadora”. Outros 19 dias de internação, e o Pinel pediu à justiça que ela tivesse alta. Passada uma semana, o pedido foi atendido, e ela voltou ao abrigo. Mais três dias e Raquel de novo foi internada no Pinel por ordem judicial: “Ao retornar ao abrigo volta a apresentar quadro importante de liberação de agressividade e falta de controle de impulsos”. Raquel ficou trancada no Pinel por 1004 dias.

Nessas três primeiras vezes, tornou-se evidente que a justiça internava e o hospital liberava, porque não havia razão para manter Raquel confinada. Documentos anexados ao prontuário mostram que a direção da instituição enviou diversos relatórios à justiça, tanto informando da alta médica da paciente quanto pedindo encaminhamento a um abrigo e tratamento ambulatorial. Num dos documentos, a direção afirma: “Nosso hospital está fazendo o papel de Abrigo para esses adolescentes. Sabedores dessa ilegalidade pedimos com urgência uma resolução para esse problema”. E, em outro ofício: “Atualmente a adolescente continua residindo na enfermaria para tratamento de pacientes agudos, encontra-se longe da escola e com enormes prejuízos psicológicos e sociais”.

“Medievais”, “desumanos” e “criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir os hospícios desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final dos anos 1970

A cada três meses, o Pinel mandou ofícios à justiça. Só foi atendido depois de quase dois anos e nove meses. Mas a vida de Raquel fora do hospital durou apenas uma semana. Mais uma vez ela foi internada na instituição. O motivo: “Evolui com episódios recorrentes de agressividade, fugas necessitando atendimento em unidades de emergência. Há dois dias em acompanhamento no CAPS sem aderência ao tratamento”. Depois de mais 413 dias de internação, Raquel fugiu do hospital. Voltou espontaneamente dois dias mais tarde. Para onde mais ela iria, já que o longo período de confinamento esgarçou ainda mais os frágeis vínculos familiares e a impediu de criar novos?

Raquel permaneceu internada mais 244 dias, antes de ser encaminhada a outro abrigo. Quinze dias fora do hospital, e a justiça mandou-a de volta: “Jogou fora seus remédios, quebrou o vidro da brinquedoteca, feriu-se, pegou o telefone para se enforcar e fugiu para uma cidade vizinha dizendo que ia procurar seus avós”.

Na sexta vez, está registrado no prontuário: “A paciente verbaliza que a maior dificuldade que enfrentou no retorno ao abrigo foi uma sensação de inadequação na convivência com adolescentes sem problemas psiquiátricos; infelizmente, criou-se um vínculo inadequado iatrogênico (provocado pela própria prática médica) de segurança com o ambiente de internação, o que se configura como Hospitalismo”.

Em outras palavras. Raquel não sabia mais viver fora do hospital psiquiátrico, seus vínculos estavam dentro da instituição. Se tinha a algum afeto, era ali. Era no hospital que ela sabia como se comportar, identificava uma rotina, fazia amigos entre outras crianças e adolescentes como ela ou realmente doentes. Considerava profissionais de saúde como parentes. E, mais tarde se saberia, quebrava coisas e agredia pessoas quando era mandada para o abrigo porque sabia que assim voltaria àquele que era o único lugar parecido com um lar que tivera na vida.

No total, Raquel ficou trancada no Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua vida cabe em três caixas do arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória manicomial. Em 2010, aos 16 anos, ela foi transferida para outro hospital psiquiátrico

Nessa época, a direção do Pinel mandou mais um ofício à justiça: “Aproveito a oportunidade para dizer da indignação dessa equipe técnica que, por diversas vezes, acionou o judiciário solicitando a desinternação desses adolescentes que, na ocasião, precisavam apenas de um abrigo para moradia e dar continuidade ao atendimento ambulatorial, tendo assim seu direito constituído”.

No total, Raquel ficou trancada no Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua vida cabe em três caixas do arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória manicomial. Em 2010, aos 16 anos, ela foi transferida para outro hospital psiquiátrico.

O diagnóstico que sustentou a condenação de Raquel a uma vida manicomial é bastante revelador: “transtorno de conduta”. Segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID), “os transtornos de conduta são caracterizados por padrões persistentes de conduta dissocial, agressiva ou desafiante. Tal comportamento deve comportar grandes violações das expectativas sociais próprias à idade da criança; deve haver mais do que as travessuras infantis ou a rebeldia do adolescente e se trata de um padrão duradouro de comportamento (seis meses ou mais)”. Essa “patologia”, assim como outras que compõem a CID, é contestada por parte dos psiquiatras, psicanalistas e psicólogos, assim como por profissionais de outros campos do conhecimento. Mas, ainda que se aceite que essa doença de fato existe, o tratamento recomendado é inserção comunitária – e não asilamento.

Em sua investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo generalizado – e quase displicente – para justificar internações em hospitais psiquiátricos. Tanto na internação pela via da rede de saúde como na internação por ordem judicial, o principal diagnóstico é esquizofrenia. Mas o “transtorno de conduta” tem aumentado. Numa comparação com uma pesquisa anterior, na qual Julia Hatakeyama Joia analisou os prontuários do Pinel entre fevereiro de 2001 e agosto de 2005, Flávia constatou que os chamados “transtornos do comportamento e transtornos emocionais” – dos quais “transtornos de conduta” correspondem a 75% dos casos – cresceram como motivo de confinamento. Em 2002, eram causa de 5,26% das internações. Passaram para 7,14% em 2005. E alcançaram 15,2% das ocorrências em 2009. “Em muitos casos, é diagnosticado em crianças com episódios de descontrole e agressividade, sem que exista uma análise sobre sua história e contexto de vida”, afirma a psicóloga. Outro dado comparativo de extrema relevância é que, entre 2001 e 2004, a proporção de internações no Pinel por ordem judicial era de 23% do total. De 2005 a 2009 saltou para 45%.

Em sua investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo generalizado – e quase displicente – para justificar internações em hospitais psiquiátricos

O “transtorno de conduta” é bem mais recorrente na internação por ordem judicial do que na internação pela via da rede de saúde. É o diagnóstico de um quarto das internações com duração maior do que 150 dias e por mais de um terço dos casos de crianças e adolescentes internados de quatro a sete vezes. É o rótulo de Raquel – e também o de José. Meninos representam quase 80% das crianças e adolescentes internados, um dado cujas razões precisam ainda ser melhor compreendidas.

José tinha 10 anos quando deu o primeiro passo para dentro do Pinel, por ordem judicial. Tinha passado, segundo o relatório da instituição, por “maus tratos, negligências e privação afetiva”. Apresentou “comportamentos desafiadores e transgressores, o que resultou em rejeição e abandono familiar, principalmente de sua mãe”. A mãe decidiu entregá-lo para o pai, na Bahia. No dia da viagem, José recusou-se a ir. Ele não queria se separar da mãe. Para não ser obrigado a viajar, por duas vezes tentou se jogar diante dos carros, na rua. A “crise de agitação” levou à sua primeira internação. A duração: 623 dias.

Quando teve alta, José foi encaminhado a um abrigo. Permaneceu apenas três dias antes de ser internado novamente. Dessa vez, ficou trancado por 255 dias. José fugiu. Para onde? Para a casa de mãe. Mais uma internação, por “agitação psicomotora com intensa heteroagressividade, baixa tolerância à frustração, sem crítica, e risco de vida”. Dessa vez, ficou 84 dias na instituição antes de fugir novamente. Para onde? Para a casa da mãe. Na quarta e última internação, ele permaneceu 309 dias no Pinel. Foi então encaminhado para um abrigo. De onde fugiu. Para a Bahia, em busca de um lugar e de um afeto.

No total, José ficou 1271 dias trancado no Pinel: três anos e cinco meses. Sobre José e Raquel, a equipe técnica do hospital enviou um ofício à Justiça, em 2008: “(…) Estão em alta médica, mas permanecem nesta enfermaria psiquiátrica para tratamento de pacientes com transtornos mentais agudos, privadas de ter uma vida digna, por não terem retaguarda familiar e não existirem vagas em abrigos”. Sobre esse destino, Flávia afirma: “As internações são motivadas por uma combinação complexa, que resulta numa situação de vulnerabilidade. A resposta da internação psiquiátrica, além de redutora de complexidade, é ela mesma produtora de maior sofrimento. A internação por ordem judicial revela uma concepção sobre a infância e a adolescência pautadas no medo e no perigo. Propõe uma resposta única a todas as situações, sem considerar diferenças, singularidades e contextos. Reduz crianças e adolescentes ao status de paciente psiquiátrico perigoso, produzindo sua cronificação”. É assim que se fabricam crianças loucas.

Vale a pergunta: fugir pode ter sido um ato de sanidade de José, na tentativa de não ser enlouquecido? De algum modo, apesar de tudo e de todos, ele parece acreditar que existe um lugar para ele, um lugar com afeto. José, Raquel e Maria nos mostram que não há desamparo maior do que o de uma criança num manicômio. Ninguém está mais sozinho nesse mundo do que José, Raquel e Maria. Expostos a uma sociedade que, além de não protegê-los, os enlouquece. Eles fogem, como José, eles quebram tudo, como Raquel, eles fazem perguntas, como Maria. Mas estão sozinhos. E cada um de seus atos de resistência é mais um carimbo de sua suposta loucura num arquivo morto.

O desafio exposto pela pesquisa é também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil. Crianças e adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade, junto à família, sem afastamento da escola

Ao analisar os prontuários, Flávia conseguiu identificar claramente as diferenças entre a internação via rede de saúde e a internação por ordem judicial. Essas são conclusões cruciais do trabalho, porque apontam o que funciona e o que não funciona, apontam saídas. Na rede de saúde, a maior parte dos encaminhamentos é feita pela emergência de hospitais, o que não é o melhor percurso. Apenas 8% são enviados para internação por Unidades Básicas de Saúde ou por CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) infantil, que deveriam ser a porta de entrada para crianças e adolescentes com sintomas de doenças mentais. Esses dados demostram a falta desses serviços, causando desamparo na população que necessita de assistência pelo SUS. Em vez de começarem o tratamento pela rede básica, inserida na comunidade, o iniciam pelo fim e por aquilo que é uma exceção necessária num mínimo de casos: a internação. A hipótese de Flávia é de que, se houvesse mais serviços comunitários de saúde mental, como está previsto na legislação, é provável que a necessidade de internação fosse bem menor. Em vez do hospital psiquiátrico, uma rede articulada, com investimento maior em equipes de saúde mental, na capacitação e implantação do Programa de Saúde da Família e de centros de atenção psicossocial. “A patologização das crianças em situação de vulnerabilidade social evidencia a precariedade da rede de atenção e cuidado, e também a insuficiente articulação entre as políticas públicas nos campos da educação, saúde, habitação e lazer”, afirma.

A diferença é clara na análise dos dados. Nos casos encaminhados pelos Centros de Atenção Psicossocial, a média de dias de internação é mais baixa do que pelos outros caminhos. Quando crianças e adolescentes são cuidados pelos CAPS depois da alta, apenas 3% são reinternados. “Isso mostra que os serviços comunitários funcionam, mas são em número insuficiente”, afirma Flávia. “Nos pacientes encaminhados pela rede de saúde, o hospital funciona como enfermaria de crise. A maioria é de adolescentes de 15 a 17 anos, em seu primeiro surto psicótico, que são cuidados e liberados. Já na internação por via judicial, o hospital funciona como instituição de asilamento.”

O desafio exposto pela pesquisa é também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil. Crianças e adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade, junto à família, sem afastamento da escola. A doença, se de fato existe, deve ser compreendida como uma das várias características – e não como a verdade única sobre aquela criança e adolescente. Mesmo a internação, se for necessária, deve ser entendida como uma parte da história – e não como a história inteira. A internação é um momento, não um destino.

Flávia permanecia das 10h até as 21h de cada sábado na sala das almas do Pinel. Numa noite, estava tão mergulhada nos prontuários que se esqueceu da hora e se atrasou para sair. O guarda do portão recusou-se a deixá-la ir. Eram as regras. Ele não estava ali para pensar sobre elas, mas para cumpri-las. E Flávia soube o que era estar entre muros – e não ser escutada. Depois de um tempo que pareceu largo demais, Flávia conseguiu provar que era uma psicóloga, fazendo um trabalho de pós-graduação para a PUC. Acredita que o fato de ser branca, loira e de olhos azuis possa ter ajudado na sua “soltura”. Mas, ao abrir o portão, o segurança alertou: “Na próxima vez, fica”. Por um momento, trêmula, Flávia teve uma tênue aproximação do que sentiram Raquel, José e Maria, apenas três entre as centenas de “crianças loucas” fabricadas nesse século.

Ao final de sua estadia no arquivo morto que ela descobriu ser vivo, Flávia finalmente tinha as respostas para Maria.

1) Por que eu vou ficar aqui?

– Porque as instituições que compõem a rede de atendimento à criança e ao adolescente trabalham de forma desintegrada e não conseguem atender às suas necessidades.

2) Quem tá aí? Quem vai dormir no quarto comigo?

– As crianças e os adolescentes que tiveram seus destinos produzidos ativamente pela desresponsabilização e pelo abandono.

Maria perguntou. Flávia escutou. Escutou de fato não quando a ouviu, mas quando fez o movimento de buscar as respostas. Elas estão aí, mas só provocarão mudança se o Estado, os governos e a sociedade as escutarem. Se nós as escutarmos. É, afinal, de escuta que se trata.

Flávia desconhece o paradeiro de José. Raquel foi libertada ao completar 18 anos. Mas o que há para Raquel depois do que fizemos com ela? É possível, é moral, é decente dizer à Raquel: vá estudar, vá trabalhar, vá construir uma vida? “É uma marca tão profunda que pessoas como Raquel, mesmo saindo da instituição, continuam institucionalizadas”, diz Flávia. “A institucionalização parece uma grande máquina que suga a potência humana, criando seres humanos sem desejo. A institucionalização é a patologia mais grave da saúde mental.”

Aos 19 anos, Raquel hoje perambula pelas ruas e albergues de São Paulo, ao redor das instituições. Às vezes declara-se “louca” e é internada por curtos períodos. Raquel sempre pergunta pelo seu melhor amigo:

– Onde está José?

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Email: elianebrum@uol.com.br. Twitter: @brumelianebrum

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